por: Dr. Paulo Romeiro

Introdução

É importante estarmos preparados para dialogar com diferentes grupos religiosos, raciocinando e argumentando com eles à luz da cosmovisão cristã com base nas Escrituras.

A religiosidade é um fenômeno universal (Eclesiastes 3.11)

Em busca de respostas: Quem sou? De onde vim? Para onde vou?

A religiosidade brasileira é multifacetada.

O fenômeno religioso tem atraído o interesse dos acadêmicos.

A religião na mídia.

Fonte:

MARKOS, Louis. Apologética cristã para o século XXI. Rio de Janeiro. Central Gospel. 2013, p. 209-220.

POR QUE CRISTO É O ÚNICO CAMINHO: CRISTIANISMO E OUTRAS RELIGIÕES

De certa forma, o cristianismo deveria exercer um forte apelo para quem vive em uma sociedade cada vez mais global e pluralista. As boas-novas de Jesus Cristo atravessam todas as fronteiras raciais, étnicas e culturais, e prometem amor, perdão, tolerância e compreensão. Jesus não limita Sua mensagem aos poderosos líderes religiosos de Sua época, mas também a estende aos pecadores, às prostitutas e aos cobradores de impostos. Na verdade, os excluídos sociais seguiam a Jesus e apegavam-se às Suas palavras com mais frequência do que os fariseus e saduceus.

Jesus tratava homens e mulheres, ricos e pobres, letrados e analfabetos com igual respeito e dignidade. E Jesus demonstrou essa visão multiétnica ao falar publicamente com uma samaritana mestiça de caráter questionável (Jo 4), curar o servo do centurião romano (Mt 8.5-13) e expulsar um demônio da filha de uma cananeia (Mt 15.21-28).

Muitas pessoas presentes nas universidades, na mídia e no governo que anseiam construir uma utopia de paz, abundância e fraternidade universais são constantemente as mais hostis ao cristianismo. O motivo dessa situação aparentemente contraditória não é difícil de discernir.

Como a Estátua da Liberdade, o cristianismo abre seus braços e portas aos cansados e aos pobres, às massas apinhadas, à recusa desventurada de nosso mundo decadente e desesperado.

Porém, ele não abre suas portas, nem seus braços para aqueles que negam ou pervertem as doutrinas principais (a Trindade, a encarnação, a expiação, a ressurreição) ou para quem rebaixa o Senhor e Salvador Jesus Cristo ao status de uma opção entre tantas.

Por mais que seja impopular fazer tal pronunciamento em nosso mundo moderno (ou melhor, pós-moderno), o fato é que as afirmações pessoais de Cristo e as afirmações doutrinárias da Igreja são necessariamente exclusivistas por natureza.

Em resposta a este aspecto inegociável do cristianismo, o apologista moderno deve procurar responder algumas perguntas:

As afirmações exclusivistas de Jesus podem ser levadas a sério numa sociedade pluralista?

Em um mundo de tantas religiões, o cristianismo não seria um obstáculo para a paz e a compreensão globais?

A alegação de que Jesus é o único caminho não é uma forma de imperialismo religioso?

EXCLUSIVISMO X PLURALISMO

O cristianismo surgiu  numa cultura pluralista. Assim como em nossos dias, os cristãos do primeiro século poderiam escolher dentre uma série de religiões, verdades e moralismos. Roma pode ter sido politicamente imperialista, mas não era assim na religião!

Enquanto outros sistemas filosóficos e cultos religiosos não quebrassem a lei, ameaçassem a paz nem desafiassem a autoridade de Roma e de seu imperador, ela se contentava em conceder-lhes liberdade de culto da maneira como lhes parecesse melhor.

Deuses como Mitra, Isis (egípcia) ou Baco (grego).

 Ouvir música natalina causa aos judeus, muçulmanos, hindus e ateus (não engajados na política) certo constrangimento.

Os cristãos primitivos estavam bem cientes de que sua religião não era apenas distintiva da Lei mosaica, mas também era incompatível tanto com o culto público e universal dos césares como com as religiões misteriosas, mais pessoais e íntimas, praticadas em segredo por numerosas seitas em todo o Império Romano.

Estudando, cuidadosamente, o contexto histórico, político e cultural no qual o cristianismo nasceu e floresceu, James Edwards (Is Jesus the only Savior?) fundamenta seu argumento de que o cristianismo é tanto teologicamente exclusivista, como  também possui alcance transcultural.

E seu argumento tem sido corroborado nos últimos anos pelo enorme crescimento do cristianismo na África e na América Latina — o que muitos chamam, atualmente, de Sul Global. Considerando que a África tinha apenas 5% de cristãos em 1900, as recentes estatísticas mostram que metade da população confessa a Cristo como Senhor.

Enquanto isso, em toda a Ásia, o cristianismo se espalha como fogo. De acordo com a porcentagem da população, a Coréia do Sul é o país mais cristão do mundo; o número de cristãos ortodoxos na China ultrapassa os da Europa. E os cristãos da China e da Coréia do Sul têm mostrado um zelo missionário destemido, suportando uma perseguição por causa da fé semelhante à dos mártires do primeiro século.

A nova face do cristianismo, como o historiador Philip Jenkins documentou, é cada vez mais pobre, negra e não ocidental. Na verdade, dentro da Comunhão Anglicana Global, são os bispos africanos que têm chamado seus irmãos e irmãs ocidentais a rejeitarem as noções liberais modernas de comodismo bíblico e de experiência sexual e a reafirmarem a ortodoxia cristã clássica.

O cristianismo está realmente se multiplicando na Ásia e no Sul Global. Porém, ironicamente, enquanto cristãos negros, amarelos e pardos estão comprometendo-se com aquele o qual acreditam ser o único Salvador do mundo, pluralistas religiosos na América e Europa continuam a declarar em voz alta, porém falsamente, que todas as religiões, no fim das contas, ensinam a mesma coisa.

A crença moderna de que as religiões são basicamente iguais, diferindo-se apenas em suas aparências, é comprovadamente falsa. Pelo contrário, as religiões são iguais em suas práticas externas (oração, jejum, dar esmola e assim por diante), diferindo-se amplamente em suas principais doutrinas teológicas.

Embora os modernistas sejam relutantes em admitir isso, a afirmação cristã de que Jesus Cristo era o Deus encarnado e a afirmação muçulmana de que Ele era um profeta, e não o Filho de Deus são declarações mutuamente exclusivas.

Igualmente, a afirmação cristã de que Deus criou o mundo como algo separado de si próprio e a alegação hinduísta de que Deus é parte do mundo não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Se uma estiver correta, então a outra deve estar incorreta. Não é a fé, mas a razão que insiste nisso!

Alguns pluralistas e relativistas, vamos admitir, fazem uma afirma- ção menos abrangente. Em vez de dizer que todas as religiões ensinam as mesmas doutrinas, eles argumentam que cada religião tem apenas uma parte da verdade. Tais pensadores, frequentemente, narram a parábola dos quatro homens cegos que encontram um elefante, e cada um dá um relato diferente, dependendo da parte do elefante em que se toca: na tromba, na cauda, na orelha ou na perna. E ainda, como vários apologistas modernos têm enfatizado, o pluralista sutilmente altera o sentido da parábola. Primeiro, ele se esquece de que realmente existe uma verdade absoluta: o elefante. Segundo, ele deixa passar o fato de que o cristianismo concorda que somos todos cegos para a verdadeira e completa natureza de Deus, mas, em seguida, passa a afirmar que Deus remediou nossa cegueira espiritual, intelectual e moral ao tomar a iniciativa de revelar-se a nós por intermédio de Cristo e da Bíblia.

Se a Bíblia (a Palavra de Deus revelada) está correta ao avaliar o problema do homem como o pecado original, então Cristo (o Verbo de Deus encarnado) é a única solução adequada. O Senhor não enviou Seu filho à terra para padecer uma morte dolorosa a fim de oferecer- -nos uma “opção”; Ele fez isso porque a encarnação (Natal), a expiação (Sexta-feira Santa) e a ressurreição (Páscoa) ofereceram o único remédio possível para o problema do pecado original.

O evangelho representa medidas extremas por parte de Deus, e os modernistas dificilmente honram a penosa solução divina, tratando-a como um dos muitos caminhos concorrentes para Ele. A salvação significa passar a eternidade adorando a Deus e, se Cristo é, de fato, Deus, então a salvação significa passar a eternidade adorando Cristo.

ALEGAÇÕES CONTRASTANTES

As alegações necessariamente exclusivistas do cristianismo podem ser mais bem avaliadas se forem contrastadas com as alegações das outras principais religiões mundiais, como: judaísmo, islamismo, hinduísmo e budismo.

Embora o cristianismo tenha nascido do judaísmo e não possa ser entendido sem este, as duas religiões pregam caminhos diferentes para a salvação e concepções distintas sobre a natureza de Deus.

Pessoalmente, apesar de achar atraente a crença popular de que Deus tem dois métodos diferentes de salvação — um para os judeus e outro para os gentios – essa crença é, afinal, incompatível com as afirmações de Cristo e da Bíblia. O ensinamento de que o homem não pode ser justificado ao praticar a Lei é essencial para a doutrina cristã.

Sim, a Lei é boa e foi dada por Deus, mas não conseguimos segui-la perfeitamente, e assim não conseguimos ser justificados por meio dela. Se os judeus conseguissem segui-la, o sacrifício de Cristo não haveria sido necessário.

A incapacidade do homem em seguir a Lei já é clara em Gênesis e Êxodo, e é por isso que os Salmos e os livros proféticos do Antigo Testamento estão repletos de prenúncios de uma perfeita revelação vindoura que restauraria a Israel e, por meio dela, o mundo.

Por intermédio da boca dos profetas, Deus promete estabelecer uma nova aliança com os judeus (Jr 31.31-34), para dar-lhes um novo coração (Ez 36.26,27) e unir o povo fiel remanescente ao Messias, o ungido Filho de Davi, cujo domínio abençoaria tanto os judeus como os gentios (Is 9.1-7,11).

Se Jesus não fosse o Cristo (ou seja, o Messias), então as promessas falharam e Israel e os gentios estão perdidos.

Jesus foi rejeitado pelos líderes de Israel, não por haver muitos caminhos diferentes para Deus e, portanto, os fariseus simplesmente escolheram outro caminho, mas porque Cristo escandalizou-os por meio de Suas afirmações radicais (em 1 Pedro 2.8, pedra de tropeço [gr. petra scandalou]).

Hoje, povos de todas as origens étnicas e religiosas continuam a ficar escandalizados pelas afirmações de Jesus ser o Filho de Deus e por Sua crucificação, um acontecimento que revela a extensão da nossa pecaminosidade, revelando as medidas extremas às quais Deus teve de recorrer para expiar nossos pecados e trazer-nos de volta a um relacionamento correto com Ele.

Depois do judaísmo, a religião que parece aproximar-se mais do cristianismo é o islamismo. Certamente, diz o pluralista moderno, os muçulmanos adoram ao mesmo Deus monoteísta dos cristãos.

Este pensamento é [aparentemente] agradável e atraente, mas simplesmente é falso. Embora o islamismo e o cristianismo compartilhem muitas crenças morais e práticas éticas semelhantes, elas são incompatíveis, teologicamente falando.

Os ensinamentos teológicos distintivos e principais do cristianismo – de que Deus é três em um (Trindade) e de que Cristo é totalmente Deus e totalmente homem (encarnação) — são categoricamente negados pelo Alcorão.

O islamismo marca não só um crescimento fora do cristianismo, mas também uma rejeição a este e um retorno ao monoteísmo radical do judaísmo. O islamismo não apenas rejeita a confissão cristã essencial de que Jesus é Senhor, como também a considerada como a maior blasfêmia.

Embora o islamismo afirme respeitar os Evangelhos, ele contradiz diretamente tanto as declarações históricas como as teológicas que são feitas neles.

De acordo com o Alcorão, Jesus não morreu na cruz, nem ressuscitou fisicamente dos mortos. Sim, Ele foi um profeta que falava palavras bonitas e realizava boas obras, mas [para eles] Sua morte não expiou nossos pecados, e Ele não tem parte na divindade de Alá.

Alguns pluralistas afirmam que o islamismo apenas substitui Jesus por Maomé, mas este não é o caso. A fé islâmica não se baseia em Maomé, mas no Alcorão que os muçulmanos consideram ser a Palavra de Deus sobrenaturalmente ditada (em vez de inspirada).

Enquanto os cristãos mantêm uma visão personificada de Cristo e da Bíblia, os muçulmanos enxergam Maomé como somente humano e o Alcorão como somente divino.

O islamismo, como todas as religiões, tem uma ramificação mística chamada sufismo, mas sua rejeição a qualquer troca mística e encarnada entre Deus e o homem o torna, radicalmente, antissacramental e iconoclasta.

O deus do islamismo habita distante e sozinho em uma unidade e identidade absoluta, e a religião que ele supervisiona é essencialmente fatalista.

As palavras muçulmano e islamismo são originadas da palavra árabe que significa “submissão”, e a submissão a Deus, e não o amor ou a união com Ele, está no centro dos ensinamentos de Maomé.

Contudo, o cristianismo exige muito mais do que a submissão; ele exorta seus seguidores a nascerem de novo para a vida eterna e indestrutível de Cristo.

Embora o cristianismo, o judaísmo e o islamismo compartilhem uma fé básica na existência de um único Deus transcendente que criou o universo, a compreensão da natureza deste único Deus e de Seu filho Jesus Cristo é incompatível. Ainda assim, a visão de mundo cristã difere mais radicalmente do hinduísmo.

Enquanto o judaísmo e o islamismo rejeitam a natureza divina de Cristo, o hinduísmo rejeita sua natureza humana.

No hinduísmo, o mundo físico é, em última análise, uma ilusão (ou Maya) e a carne é algo do qual se deve fugir. A salvação não vem por meio do triunfo físico de Cristo sobre o pecado, sobre Satanás e sobre a morte e pela graça que atua no mundo, mas por meio de uma mudança em nossa percepção (de acordo com o ramo mais “refinado”) ou por meio do acúmulo de “méritos” kármicos.

 O hinduísmo não resgata o mundo, e sim o rejeita! De fato, no cerne do hinduísmo não está a união de Deus e do homem por meio de uma encarnação, mas uma negação monística da distinção corpo/espírito que o cristianismo defende em tensão paradoxal.

Por um lado, o hinduísmo e o cristianismo podem parecer compatíveis, pois o hinduísmo compartilha a crença cristã de que Deus visitou a terra em forma física.

Assim como Deus se tornou homem em Cristo, o deus Vishnu entrou em nosso mundo físico por meio de uma série de encarnações animais e humanas conhecidas como avatares. No entanto, há pelo menos três diferenças importantes entre a encarnação de Cristo e os avatares de Vishnu.

Em primeiro lugar, os avatares de Vishnu não marcam uma fusão encarnada do humano com o divino. Vishnu, na verdade, não se tornou um homem; ele apareceu apenas como homem por um tempo, e depois voltou para o reino espiritual. Cristo, no entanto, ao ressuscitar fisicamente da sepultura, continua, mesmo no céu, sendo plenamente homem e plenamente Deus.

Em segundo lugar, Vishnu apareceu em diferentes formas (Rama, Krishna etc.), enquanto Cristo é o Filho unigênito de Deus.

Em terceiro lugar, considerando que Jesus nasceu sob o domínio de César Augusto e morreu sob o de Tibério, os avatares de Vishnu não ocorrem durante uma época histórica, mas sim em uma época lendário-mítica.

Por fim, o ensinamento hindu (e budista) sobre a reencarnação viola a essência da personalidade humana que o cristianismo protege por meio do ensinamento de que somos a fusão encarnada de um corpo e uma alma.

E essa violação continua além do samsara (o ciclo da reencarnação). Ao contrário da visão cristã no céu como um casamento entre Cristo e a Igreja que resulta em pura alegria, o hindu (e o budista) considera o nirvana – alcançado quando nos libertamos da samsara – um lugar em que a alegria, a emoção e a personalidade são totalmente extintas.

De forma irônica, embora o cristianismo seja radicalmente distinto de religiões “sofisticadas” como o islamismo, o judaísmo e o hinduísmo, ele tem se mostrado capaz de satisfazer os anseios mais profundos de tribos isoladas que praticam religiões populares “primitivas”.

Como o missionário e apologista Don Richardson documentou em O fator Melquisedeque, dezenas de grupos tribais animistas espalhados pela África e Ásia abrigam, por trás de seus estranhos rituais e práticas ocultistas, um antigo segredo: há um único Deus Santo que criou o mundo e que não habita em templos feitos por mãos humanas.

A maioria desses grupos tribais mantém uma antiga memória geracional de que seus antepassados perderam contato com o Único Deus e [que, por isso,] foram escravizados pelos espíritos a quem servem por medo, e não por amor.

Em contraste com as teorias iluministas sobre a religião que declaram que o monoteísmo evoluiu do animismo, a presença desses grupos sugere que o oposto é mais provável — que o monoteísmo foi o estado original da humanidade, mas caímos no animismo e em outras formas de superstição.

A semelhança do encontro entre Melquisedeque e Abraão (Gn 14.18-20), quando tribos como Karen da Birmânia, Santal da índia e o povo de Gedeo da Etiópia entraram em contato com missionários cristãos pela primeira vez, eles imediatamente os reconheceram como portadores das boas-novas de um Deus que os libertaria da escravidão aos espíritos.

Muitos relataram ainda que Deus havia prometido a seus antepassados que um dia os enviaria um “irmão branco”, portando um “livro perdido”, que os ensinaria a reconciliarem-se com Deus.

FERNANDO, Ajith. A supremacia de Cristo: uma apologética ao alcance de todos. São Paulo. Publicações Shedd. 2013, p. 17-53.

O Cristo supremo e o desafio do pluralismo

Em uma viagem recente a um país asiático vizinho, fui hóspede no lar de uma família missionária, proveniente dos Estados Unidos. Fui fazer uma caminhada com o missionário e, quando voltamos para casa, encontramos a esposa missionária irada e profundamente perturbada. Acabara de ler um artigo na revista Time, sobre três livros novos a respeito de Jesus Cristo.1 Todos os três livros foram escritos por “estudiosos respeitados,”2 mas apre- sentavam um Cristo bem diferente daquele que fora adorado pelos cristãos durante vinte séculos. Para conseguir isso, negaram que os Evangelhos são uma fonte fidedigna de informações exatas a respeito de quem era o Jesus verdadeiro. Tem surgido uma enxurrada de livros semelhantes, publicados nestes últimos poucos anos.3 A maioria deles recebe ampla publicidade. A capa de um desses livros: Jesus the Man: Λ New Interpretation of the Dead Sea Scrolls [Jesus o homem: uma interpretação nova dos manuscritos do Mar Morto], da professora da Universidade de Sydney, Barbara Thiering, descreve o livro como “o campeão de vendas controvertido que transformará para sempre o seu conceito do cristianismo.”

O que estamos vendo recentemente é o ponto culminante de uma tendência que já está em evidência há cerca de um século. Em 1901, um teólogo alemão influente, Ernst Troelsch, escreveu um livro sobre a incom- parabilidade do cristianismo chamado de The Absolute Validity of Christianity [A legitimidade absoluta do cristianismo].4 Nele, argumentou em favor da incomparabilidade absoluta do cristianismo. Mais de vinte anos mais tarde, escreveu um estudo para ser apresentado diante da Universidade de Oxford, mas morreu antes de apresentá-lo. No estudo, argumentou que o cristianismo é absoluto para os cristãos, ao passo que as outras religiões são absolutas para os seus seguidores.5 Com semelhantes mudanças de vulto ocorrendo nas mentes de muitos, dentro da igreja, o relativismo tornou-se uma chave para o entendimento da verdade religiosa, em muitos círculos.

Naturalmente, nem todos aqueles que mudaram de opinião a respeito de Jesus têm mudado na direção de rejeitar a sua incomparabilidade de supremacia. Um dos grandes evangelistas da Ásia foi John Sung (1901-44), um chinês brilhante. Filho de um pastor chinês, foi para os Estados Unidos para estudar em 1920. Teve desempenho brilhante e se formou doutor em química na Universidade do Estado de Ohio. Em seguida, embora estivesse perdendo a sua fé no caminho cristão da salvação, matriculou-se no Semi- nário Teológico Union em Nova York. Ali, destituído da fé que antes o sustentara, voltou-se para o misticismo budista e taoísta, em uma tentativa de alcançar paz de espírito. Nesse período, foi à Igreja Batista Calvary, em Nova York, para uma reunião evangelística, esperando ouvir um pregador eloquente e erudito, mas, pelo contrário, quem falou foi uma moça de quinze anos!6 Embora os amigos zombassem daquilo que aconteceu ali, Sung ficou tão impressionado que voltou durante quatro noites consecutivas. Assim, foi levado a voltar à fé, à incomparabilidade absoluta de Jesus Cristo que antes tivera.

A mudança na vida de John Sung foi tão marcante, e seu desejo de compartilhar a sua fé tão intensa, que foi declarado doente mental e inter- nado em um hospício psicopático. Depois de seis meses, foi solto, graças à intervenção de amigos em seu favor, com a condição de voltar imediata- mente à China. Voltou mesmo em 1927, e viveu somente até 1944. Durante aquele período, porém, tornou-se um evangelista ardente e um agente de reavivamento, em muitas partes da Ásia Oriental.

Vi esse tipo de coisa acontecer com ministros que rejeitavam as crenças ortodoxas a respeito de Cristo no seminário teológico. Depois de alguns anos de ministério, voltam às opiniões que sustentavam na juven- tude, possivelmente como resultado de reconhecerem a incapacidade das suas novas idéias para levar a efeito uma transformação na vida das pessoas ministradas bem como na sua própria vida. Apesar disso, o novo conceito de Cristo, negando-lhe a supremacia, está conquistando seguidores em todas as partes do mundo. Neste livro, considero a vida e obra de Jesus e demonstro que existem fundamentos muito razoáveis para crer que Jesus é realmente supremo.

Rejeitando a mensagem dos textos-prova comprovados pelo tempo

Durante os primeiros dezoito séculos, com frequência, quando os cristãos desejavam exprimir a qualidade incomparável da sua fé citavam

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declarações na Bíblia, como João 14.6: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim” e Atos 4.12: “Não há salva- ção em nenhum outro, pois, debaixo do céu, não há nenhum outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos.” Entretanto, muitos estão dizendo hoje que não podemos edificar a nossa convicção a respeito de um tema tão fundamental em versículos isolados assim. Os que dizem assim não acreditam na autoridade verbal das Escrituras. Um teólogo influente da índia, Stanley Samartha, levanta objeções ao emprego de textos-prova bíblicos desse tipo, para levantar um argumento em favor da incomparabi- Made absoluta do cristianismo. Queixa-se que: “muitas vezes, afirmações em favor da ‘normatividade’ de Cristo baseiam-se na autoridade da Bíblia. Textos exclusivos são jogados de lá para cá como se, pela mera citação de textos das Escrituras, o problema fosse solucionado.”7 Considera insuficiente e inapropriado esse método.

Essa mudança de considerar o cristianismo em termos absolutos é evi- denciada também no Ocidente onde hoje existe muito ceticismo a respeito da possibilidade de se saber a verdade. Um levantamento de dados por George Barna, em 1991, revelou a estatística em que 67 por cento do povo da América do Norte acredita que a verdade absoluta não existe. O que surpreende ainda mais é que 53 por cento daqueles que alegam ser cristãos conservadores bíblicos disseram que a verdade absoluta não existe.8 Em um campus secular, o estudante encontra repetidíssimas vezes a crença de que ninguém tem o direito de alegar que sabe com certeza e que a sua resposta, em uma determinada questão, é a única correta.

E nossa convicção que textos como João 14.6 não são o único argu- mento que temos em favor da incomparabilidade absoluta do evangelho cristão revelado nas Escrituras. Esses textos articulam, de modo explícito, uma verdade que se irradia das Escrituras com clareza inconfundível. No presente livro, espero demonstrar a veracidade daquilo que é declarado em João 14.6. Mostrarei que o quadro geral que a Bíblia nos mostra é que os seus escritores acreditavam que o evangelho cristão é absolutamente verda- deiro, em um sentido de que nenhum outro evangelho o é. Demonstrarei que precisamos concluir que Cristo também acreditava assim. Em seguida, procurarei convencer o leitor que devemos aceitar como válido aquilo que Cristo acreditava a respeito de si mesmo. Em outras palavras, procuro convencer até mesmo aqueles que não aceitam que a Bíblia é a autoridade

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infalível da fé. Se nosso argumento em favor da supremacia de Cristo de- pender apenas de alguns poucos textos, somente aqueles que acreditam na infalibilidade das Escrituras ficarão convictos. Quero mostrar a outros também que a evidência é tal que serão forçados à conclusão inescapável da supremacia de Cristo.

Muitas razões podem ser citadas para explicar a erosão na nossa con- fiança de que Jesus é a verdade absoluta. Aqui, examinaremos uma razão principal dessa erosão: é a filosofia do pluralismo que parece dominar o pensamento de muitas pessoas quando se trata da questão da verdade re- ligiosa.

A filosofia do pluralismo

A filosofia do pluralismo acha-se no âmago do pensamento do movi- mento da Nova Era e também de algumas das teologias alegadamente cristãs.9 Encaixa-se bem também com o pensamento budista e hinduísta. Aqui, não estamos falando do pluralismo que permite a existência de diferenças políti- cas, étnicas e culturais, em uma sociedade ou igreja. Creio que aquele tipo de pluralismo seja saudável tanto para a igreja quanto para a sociedade. Pelo contrário, estamos nos referindo aqui a “um posicionamento filosófico”10 que reconhece mais que um princípio ulterior e que, portanto, alega que não nos é possível dizer que qualquer sistema individual de pensamento é a verdade absoluta. Donald Carson o descreve como “um posicionamento que insiste que a tolerância é obrigatória, posto que nenhuma correnteza no mar da diversidade tem o direito de assumir a precedência sobre todas as demais correntezas.” Diz que “na esfera religiosa, nenhuma religião tem o direito de se declarar certa a si mesma, e as outras, falsas. O único credo absoluto é o credo do pluralismo.”11

Talvez o pluralista moderno mais conhecido seja o teólogo presbite- riano britânico, João Hick, que agora está na Escola Pós-graduada Claremont, na Califórnia. Na década de 1970, conclamou a uma revolução copernicana na nossa teologia das religiões. Diz: “Copérnico reconhecia que é o sol, e não a Terra, que está no centro, e que todos os corpos celestes, inclusive nossa própria Terra, giram em torno dele.” Aplica essa analogia à nossa aborda- gem às religiões. Diz que os cristãos conservam Cristo ou o cristianismo no centro, e consideram as demais religiões no seu relacionamento com o cristianismo. Pelo contrário, diz Hick: “Precisamos nos dar conta de que o universo das religiões centraliza-se em Deus, e não no cristianismo nem

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em qualquer outra religião. Ele é o Sol, a fonte originária da luz e da vida a quem todas as religiões refletem das suas próprias maneiras diferentes.”12 Nos seus escritos posteriores, Hick modificam um pouco essa posição. Agora, não é mais a Deus que coloca no centro, mas aquilo que chama de “o Real.” Assim, Hick se permite incluir no seu “sistema solar” das religiões os budistas Theravada13 que não levam em conta o divino no seu sistema religioso. Segundo essa ideia, os muçulmanos apreenderíam o Real como pessoal, ao passo que os hindus o apreenderíam como impessoal.14

Por contraste com esse tipo de pluralismo existe o inclusivismo. Essa opinião, que tem sido proposta por teólogos católicos romanos como Karl Rahner,’ י Hans Küng16 e Raimundo Panikkar,17 está conquistando

popularidade também nos círculos protestantes. Nesse sistema, a salvação é considerada como sendo somente por meio de Cristo. Entretanto, Cristo podia empregar outros meios para salvar, e não apenas aqueles que exigem que o evangelho seja ouvido. Exemplos de semelhantes meios são chama- dos, segundo a linguagem católica romana típica, os sacramentos de outras religiões.16 Rahner descreveu os membros salvos de outras religiões como “cristãos anônimos.” Küng se refere às religiões não-cristãs como o modo “usual” da salvação, ao passo que o cristianismo é um modo “muito especial e extraordinário” da salvação. Pensadores evangélicos como Sir Norman Anderson1’1 e, mais radicalmente, Clark Pinnock20 e John Sanders21 também veem a possibilidade da salvação à parte do conhecimento explícito do evan- gelho de Cristo. Entendem que nossa atitude de arrependimento e de fé é uma forma que pode mediar a salvação através da graça de Deus em Cristo.

A opinião cristã tradicional a respeito das religiões do mundo é chamada exclusivismo. Nesse caso, o evangelho cristão é considerado a única verdade ulterior, e a aceitação desse evangelho é a única maneira pela qual as pessoas possam ser salvas.22

O pluralismo e a revelação

O pluralismo religioso traz uma nova ideia da revelação. No decorrer dos anos, os cristãos entendem que a revelação é o desvendamento que Deus faz da sua verdade à humanidade. Geralmente, o fez de modos acessíveis a todas as pessoas — através da natureza e da consciência, por exemplo, e especificamente nas Escrituras e supremamente em Jesus Cristo. Segundo a nova ideia, a verdade nao e revelada a nós, mas e discernida por nós, mediante a

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nossa experiência. Os escritos das várias religiões, quer sejam o hinduísmo, a Nova Era, o islamismo ou o cristianismo com razão refletem descobertas diferentes (mediante a experiência) do único Deus. As religiões diferentes são expressões diferentes do absoluto. Cada uma contém facetas da verdade.

Uma parábola hindu é com frequência usada para descrever essa ideia. Vendam-se os olhos de umas poucas pessoas que são levadas a um elefante, e pergunta-se a elas o que percebem ao tocarem no objeto diante delas. Uma delas toca na tromba e diz que é semelhante a uma árvore. Outra toca em uma perna e diz que é semelhante a uma coluna, e assim por diante. Trata-se do tateamento daqueles que tocaram em diferentes partes do ele- fante enorme. Nossas idéias religiosas diferentes são assemelhadas a isso. Semelhante verdade, naturalmente, não pode ser absoluta. Na realidade, no hinduísmo, a divindade absoluta não pode ser conhecida. E o hinduísmo é, de muitas maneiras, a mãe do pensamento da Nova Era.

O pluralismo e o encontro entre as religiões

Fica claro, pela descrição acima, que os pluralistas não podem aceitar a ideia de que um só caminho é o único caminho. Portanto, não aceitariam bem a ideia de esforçar-se pela conversão de pessoas de outra religião. Falei certa vez em uma conferência em Sri Lanka, juntamente com outro conferencista, sobre o tema da missão cristã em Sri Lanka. O outro locutor disse que, quando um budista veio a ele, expressando o desejo de se tornar cristão, disse-lhe: “Você tem uma religião tão magnífica. Por que você quer se tornar cristão? Por que você não estuda com mais cuidado sua própria religião para se tornar um budista melhor?”.

Uma das chaves no encontro entre as religiões é aprender uns dos outros.23 Dessa forma, o diálogo substituiu a apologética, no encontro entre as religiões. Segundo se declara, semelhante encontro envolve todos se reunirem como iguais, recusando-se a insistir que seu próprio caminho é o único caminho correto. O líder cristão em Sri Lanka, Wesley Ariarajah, que é Secretário Geral Assistente do Concilio Mundial de Igrejas, escreve: “Qualquer pessoa que aborda outra com uma pressuposição, a prion, de que sua história é ‘a única história verdadeira’, mata o diálogo antes de ele começar.”24 Certa vez, um líder eclesiástico, falando na conferência anual da minha denominação, disse que devemos remover a palavra unico do vo- cabulário cristão.

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O novo alvo nas missões é as religiões diferentes se enriquecerem, mediante suas contribuições distintivas, e combinarem, entre si, para batalha- rem contra o materialismo irreligioso que está atacando a alma da sociedade contemporânea.

Esse modo de entender a tolerância está embutido na estrutura do pensamento hindu e budista. Na prática, entretanto, estamos vendo muita intolerância entre os seus líderes, quando um dos seus adeptos se torna cris- tão. Trata-se do princípio de tolerância de todos, menos daqueles que rejeitam o pluralismo. Creio que essa situação é perceptível também no Ocidente.

A luz dos desenvolvimentos esboçados acima, não me admira que muitos cristãos estão perguntando se as afirmações cristãs de uma revelação inigualável e absoluta continuam a ser válidas nesta era moderna. Minha esperança é demonstrar que sim.

1Richard N. Ostling: “Jesus Cristo, Claro e Simples,” Time, 10 de janeiro de 1994, 34-35.

2John Dominic Crossan: Jesus, A Revolutionary Biography (San Francisco: Harper San Francisco, 1993); Burton Mack: The Tost Gospel (San Francisco: Harper San Francisco, 1994); The Jesus Seminar: The Five Gospels: The Searchfor the Authentic Words of Jesus (New York: Macmillan, 1993).

3 E.g.: Barbara Thiering: Jesus the Man: A New Interpretation of the Dead Sea Scrolls (London: Corgi, 1993), publicado originalmente como Jesus and the Riddle of the Dead Sea Scrolls (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1992); A.N. Wilson: Jesus: A Tife (New York: Ballantine, 1992); John Shelby Spong: Born of a Woman: A Bishop Rethinks the Birth of Jesus (San Francisco: Harper San Francisco, 1992); Ian Wilson: Jesus: The Evidence (London: Weidenfield & Nicolson, 1984). N. T. Wright, professor de Novo Testamento na Universidade de Oxford, escreveu uma resposta ao primeiro dos três livros mencionados acima, com o título: Who Was Jesus? (London: SPCK: Grand Rapids: Eerdmans, 1992).

4 Republicado com o título: The Absoluteness of Christianity (Atlanta: John Knox, 1971; London: SCM Press, 1972).

5 Reimpresso como “The Place of Christianity Among the World Religions,” em Christianity and Other Religions, eds. John Hick e Brian Hebblethwaite (Edinburgh: Collins, 1980), 11-31.

6Leslie T. Lyall: A Biography of John Sung (London: CIM, 1961), 31. A narrativa aqui repetida foi tirada daquele livro.

7 Stanley Samartha: “The Cross and the Rainbow,” em The Myth of Christian Uniqueness, eds. John Hick e Paul F. Knitter (London: SCM Press; Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1987), 78. Ver também Wesley Ariarajah: The Bible and People of Other Faiths (Geneva: World Council of Churches, 1985), 21.

23

״George Barna: What Americans Relieve (Ventura, Calif.: Regal, 1991), citado em Charles Colson:

The Body (Dallas: Word, 1992), 171, 184.

’’ Quanto a um estudo compreensivo da questão do pluralismo, ver Ken Gnanakan: The Pin- ralistic Predicament (Bangalore: Theological Book Trust, 1992).

” D. A. Carson: “Christian Witness in an Age of Pluralism,” em God and Culture, eds. D. A. Carson e John D. Woodbridge (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans; Carlisle: Paternoster, 1993), 33. Cristo & cultura: uma releitura. Edições Vida Nova, 2012.

11Ibid., 33.

12John Hick: “Whatever Path Man Choose Is Mine,” em Christianity and Other Religions, ed. John Hick e Brian Hebblethwaite (Philadelphia: Fortress; Glasgow: Collins, 1980), 182. Quanto a um estudo mais pleno dessa opinião, ver God and the Universe of Faiths (London: Macmillan, 1973).

13 O budismo Theravada é a forma ortodoxa do budismo que se acha em países como Sri Lanka, Tailândia, Birmânia e Laos. Theravada significa “o caminho dos anciãos.”

14 Ver John Hick: An Interpretation of Religion (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1988).

יי Ver Karl Rahner: “Christianity and the Non-Christian Religious,” em Christianity and Other

Religions, 5279־ e Theological Investigations, vol. 5 de Tater Writings (London: Darton, Longman

and Todd, 1966), 115-34.

16 Ver Hans Kting, em Christian Revelation and World Religions, ed. Joseph Neuner (London: Burns and Oates, 1967), 52-53.

1 Ver Raimundo Panikkar: The Unknown Christ of Hinduism, ed. rev. (Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1981).

18 Ver Nihal Abeysingha: A Theological Evaluation of Non-Christian Rites (Bangalore: Theological Publications, 1979).

1’1Ver Sir Norman Anderson: Christianity and World Religions (Leicester and Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1984), 137-61.

211 Ver Clark Pinnock: “The Finality pf Christ in a World of Religions,” Christian Faith and Practice in the Modern World, eds. Mark A. Noll e David F. Wells (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1988), 152-68 e “Toward am Evangelical Theology of Religions,” journal of the Evangelical Theological Society 33 (sept, de 1990): 359-68.

21 John Sanders: No Other Name: An Investigation into the Destiny of the Unevangelis^ed (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1992).

22 O Dr. Ramesh P. Richard apresentou uma crítica compreensiva da posição inclusivista evan- gélica em The Population of Heaven (Chicago: Moody Press, 1994). Ver também meu livro The Christian’s Attitude Towards World Religions (Wheaton, 111.: Tyndale House, 1987); Robertson McQuilkin: “The Narrow Way,” em Perspectives on the World Christian Movement: A Reader, eds. Ralph D. Winter e Steven C. Hawthorne (Pasadena, Calif.: William Carey Library, 1981), 127-34; Dick Dowsett: God, That’s Not Fair! (Sevenoaks: OMF; Bromley: STL, 1982); e J. Oswald Sanders: How Tost Are the Heathen? (Chicago: Moody Press, 1972).

23Tratei da questão de aprender de outras religiões no meu livro The Christian’s Attitude Toward W’orld Religions (p. 110-13). Ali demonstrei que, pelo fato de a revelação geral de Deus estar disponível para a totalidade da humanidade, existem coisas que podemos aprender de pessoas de outras religiões.

24 Wesley Ariarajah: “Toward a Theology of Dialogue,” The Ficumenical Review of Theology, 19, n° 1 (jan. 1977): 5.

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CAPÍTULO 2

Jesus é ver434e absolutg

Já vimos como a disposição de ânimo pluralística deixa, as pessoas dos nossos dias céticas, a respeito da ideia de conhecer a verdade absoluta. O cristão bíblico penetra nesse ambiente de incerteza, a respeito da verdade, e declara que podemos conhecer a verdade absoluta. Dizemos que a achamos em Jesus e que Jesus é a verdade conforme ele mesmo declarou emjoão 14.6. Isso significa que é a personificação da verdade – é a verdade incorporada. Jesus não somente dizia: “O que falo é a verdade,” que significa: “Eu sou verdadeiro.” Disse: “Eu sou a verdade,” a realidade última.

Cremos em uma revelação específica

Essa revelação não é alguma coisa descoberta primariamente pela ex- periência. O pluralista diz que aquilo que chamamos de revelação é realmente o registro das experiências religiosas de determinado povo. Nós dizemos que foi revelada por Deus, e não descoberta primariamente pela raça humana.

O Dr. Wesley Ariarajah, Secretário Geral Assistente do Concilio Mun- dial das Igrejas, expressa bem o conceito pluralístico da revelação. Diz que “a verdade, no sentido absoluto, está além do alcance de qualquer pessoa,” que “a insistência na verdade absoluta e objetiva provém de certas tradições culturais e filosóficas que são estranhas à Bíblia.” Sua opinião a respeito da Bíblia é que o que está escrito ali “não são tentativas para projetar a verdade objetiva, mas um grande esforço para entender, para celebrar, para teste- munhar e para relatar.”1 Portanto, segundo o pluralista típico, as Escrituras das religiões diferentes registram o que seus autores têm descoberto, através da sua experiência do único Deus verdadeiro.

Por contraste, nós afirmamos que Deus fala nas Escrituras, e de modo supremo na pessoa de Cristo. Hebreus 1.1-2 resume bem esse ponto de vista. O v. 1 fala da revelação no Antigo Testamento: “Há muito tempo Deus

falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas.” O v. 2 apresenta a revelação em Jesus: “mas nestes úldmos dias nos falou por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo.”

Jesus é verdade absoluta

Jesus fundamenta sua declaração de que é a verdade nos versículos que se seguem após João 14.6. Em primeiro lugar, expande essa declaração de que ele é a verdade. O v. 7 diz: “Se vocês realmente me conhecessem, conheceríam também a meu Pai. Já agora vocês o conhecem e o têm visto.” Conhecer a Jesus é conhecer o Pai. Como os discípulos não tinham captado plenamente a verdade a respeito de Jesus, este diz: “Se vocês realmente me conhecessem.” Mas aquela situação não demoraria para mudar-se. Jesus passa, então, a dizer: “Já agora vocês o conhecem.” Leon Morris indicou que, quando Jesus disse que podemos conhecer a Deus, ele “vai além de qualquer coisa que os santos homens do passado normalmente declaravam […]. Jesus oferece àqueles que creem, algo de novo e notável na experiência religiosa: o verdadeiro conhecimento de Deus.”2

Jesus faz mais outra consideração contundente emjoão 14.7. Diz: “Já agora vocês o conhecem e o têm visto.” Jesus está dizendo que os discípulos já têm visto Deus Pai. William Barclay diz: “É bem possível que para o mundo antigo esta seja a coisa mais estonteante que Jesus chegou a dizer. Para os gregos, Deus era caracteristicamente O invisivel. Os judeus contariam como artigo da fé que nenhum homem jamais viu a Deus em qualquer ocasião.”3 Leon Morris conclui: “Jesus está afirmando algo muitíssimo maior do que qualquer outra pessoa tivesse declarado.”4

Mesmo assim, parece que os discípulos não tinham captado essa ver- dade. Por isso, emjoão 14.8, Filipe diz: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta.” Jesus responde: “Você não me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me vê, vê ao Pai. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’? Você não crê que eu estou no Pai e que o Pai está em mim?” (v. 9 e 10a).

E interessante que, embora os oponentes de Jesus compreendessem que Jesus se declarava igual a Deus, os discípulos não compreendiam isso. Talvez isso seja porque os oponentes não eram avessos a pensar coisas más contra Cristo. Uma afirmação sua à divindade confirmaria nas suas men-

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tes aquilo que estavam querendo acreditar: que Jesus não era uma pessoa boa. Portanto, quando escutaram Jesus fazer uma declaração a respeito da sua divindade tentaram apedrejá-lo “pela blasfêmia, porque,” segundo dis- seram, “sendo um simples homem, se apresenta como Deus” (João 10.33). Os discípulos de Cristo não queriam pensar em Cristo como blasfemador; portanto, teriam procurado entender de modo diferente as afirmações que Jesus fez à sua própria divindade. Eles o amavam, e não lhe queriam atribuir blasfêmia. A ressurreição transformou suas atitudes sobre isso, pois então ficaram sabendo que Jesus era realmente divino, e que aquelas declarações não eram blasfemas, mas gloriosamente verdadeiras.

Uma coisa semelhante está acontecendo hoje. Quando os não-cristãos nos acusam de arrogância e de exclusivismo porque dizemos que Cristo é o único caminho, alguns cristãos procuram refutar essa acusação, rejeitando as afirmações de exclusivismo feitas nos Evangelhos. Assim fazem, ou alegando que Jesus realmente não disse tais coisas, ou alegando que a interpretação exclusivista daquelas declarações é incorreta. Responderemos a essas duas opções no decorrer desse livro.

Em João 14.7-10, portanto,Jesus se declara igual a Deus, e está dizendo isso porque é mesmo igual a Deus: quando vemos a Jesus, vemos a Deus. Essa afirmação foi explicada mais claramente por João, no primeiro capítulo do seu evangelho. Os três primeiros versículos de João empregam muitas declarações que proclamam que a Palavra era o absoluto: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. Ela estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dela; sem ela, nada do que existe teria sido feito.” Essas são declarações a respeito do Deus absoluto.

João 1.14 diz que esse absoluto se tornou concreto na pessoa de Jesus: “A Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.” Já notamos que Palavra aqui se refere ao absoluto. Carne, por outro lado, é uma palavra terrestre quase grosseira. João está dizendo, portanto, que o absoluto se tornou concreto, ao se tornar plenamente humano. F. F. Bruce resumiu assim a doutrina em João 1: “Deus, que se revelara a si mesmo — ‘enviara a sua palavra’ – de várias maneiras desde o início, tornou-se conhecido, finalmente, em uma pessoa histórica real: quando ‘a Palavra se tornou carne,’ Deus se tornou homem.”5

João, entretanto, não pára aí. O v. 14 do capítulo 1 continua, dizendo: “Vimos a sua glória, a glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça

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e de verdade.” Esse versículo inteiro está carregado de profunda relevância, derivada do modo de o Antigo Testamento entender a glória shekinah de Deus que descia, quando Deus visitava o tabernáculo. A linguagem usada por João nos leva a essa figura do Antigo Testamento. Essa verdade aplica-se especialmente ao verbo grego skenoo, que é traduzido por “fez sua moradia” e que significa literalmente “montou o seu tabernáculo.”6 D. A. Carson diz: “É nada menos do que a glória de Deus que João e seus amigos testemunharam na palavra-que-se-tornou carne.”7 João disse que viram essa glória “cheia de graça e verdade.”

João explica esse conceito de novo em 1.18: “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido.” Ele nos ensina que, quando vemos a Jesus, vemos o Deus absoluto. Con- cluímos, portanto, que a verdade absoluta pode ser conhecida, porque 0 absoluto se tornou concreto na historia, na pessoa de Jesus.

Paulo faz essa mesma afirmação em Colossenses 2.9: “Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade.” Peter O’Brien ressalta que a palavra aqui traduzida por divindade (theotes) deve ser distinguida de he theiotes, que significa “natureza divina” ou “qualidade divina” ou “semelhança de Deus.” E por isso que várias versões a traduzem por “deidade.” O’Brien cita um comentarista mais antigo, H.A.W. Meyer, que declarou: “A essência de Deus, indivisa e na sua total plenitude, habita em Cristo.”8

Hebreus 1.2-3a também apresenta essa ideia sob a perspectiva de ex- plicar a revelação que foi feita na encarnação: “nestes últimos dias [Deus] nos falou por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e por meio de quem fez o universo. O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser.”

Ora, as testemunhas oculares viram e experienciaram Jesus, e interpre- taram o que viram e experienciaram, mediante aquilo que Jesus lhes ensinou sob a orientação do Espírito Santo. O próprio Jesus prometeu: “Não falará de si mesmo; falará apenas o que ouvir, e lhes anunciará o que está por vir” (Jo 16.13). O Novo Testamento é o resultado dessa atividade do Espírito. E mediante essa atividade, conseguimos chegar a conhecer a verdade absoluta.

Os hindus dizem que o absoluto (paramatman) não pode ser conhecido. Chamam-no de Nirguna Brahman. Nirguna significa “sem atributos.” As idéias da Nova Era seguem esse conceito, e falam de uma alma mundial impessoal. Nós dizemos que o absoluto é uma pessoa, Jesus Cristo.

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Aqui, então, está o nosso argumento em favor da declaração de que cremos na verdade absoluta. Dizemos que Jesus é Deus. Conhecer a Deus, portanto, é conhecer o Absoluto. Nossa fé na qualidade absoluta do evan- gelho cristão é uma extensão da nossa fé – que Jesus é Deus encarnado. E interessante que John Hick, que é o pluralista de maior destaque dessa geração, rejeita a doutrina cristã da encarnação.9 Foi ele quem editou o livro controvertido: The Myth of God Incarnate [O mito do Deus encarnado].10

Conhecendo o absoluto mediante um relacionamento

Agora chegamos à questão de como, e em que sentido, conhecemos a verdade absoluta. Se a verdade é uma pessoa, conheceremos a verdade do mesmo modo que conhecemos as pessoas; isto é: mediante fatos a respeito delas e mediante um relacionamento com elas. Conhecemos, portanto, o absoluto mediante um relacionamento, porque essa é a maneira que ele escolheu para comunicar a verdade. Ele o fez pessoalmente.

A fim de entrarmos no conhecimento do absoluto, precisamos, por- tanto, ficar conhecendo a Deus. O Evangelho de João tem muita coisa para dizer a respeito da fé como o modo de chegarmos a conhecer a Deus. Crer aparece noventa e oito vezes neste Evangelho. Significa essencialmente “confiar.” E mais, o crer é o equivalente a receber Cristo (1.12), obedecer a ele (3.36) e permanecer nele (15.1-11). J. Carl Laney diz: “‘Crer’ em Cristo não se refere meramente ao assentimento intelectual a uma proposição a respeito de Cristo. Pelo contrário, o conceito bíblico da ‘fé’ envolve uma resposta e comprometimento pessoal com a Pessoa de Cristo.”11 Assim fica aberto o caminho ao conhecimento da verdade absoluta.

  1. Stanley Jones conta a história de um médico que estava no seu leito de morte. Um médico cristão sentou-se ao seu lado e o conclamava a se render e a ter fé em Cristo. O médico moribundo escutava atônito. Então raiou a luz na sua alma. Disse, jubiloso: “Durante toda a minha vida, fiquei preocupado com 0 que devo crer, e agora percebo que é em quem confiar.”12 A fé é confiar nossa própria pessoa a Jesus.

Não estamos dizendo que o conteúdo do evangelho está destituído de importância. E o conteúdo que nos conta quem Jesus é, e o que ele tem feito. Posteriormente, demonstrarei que a revelação é transmitida em proposições. E o conhecimento dos fatos do evangelho que abre a porta a um relacionamento com Deus, e aquele relacionamento é o âmago da salva29

ção cristã. Jesus disse: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Quando a palavra conhecer é usada na Bíblia, sendo que o objeto é uma pessoa, normalmente se refere a um relacionamento pessoal íntimo.13 Nós, portanto, o amamos como nosso amigo, e o seguimos como nosso Senhor. E por isso que a chamada básica de Cristo não era “segue a minha doutrina,” mas “segue-me a mim.”

E interessante que Jesus disse: “Mas eu lhes afirmo que é para o bem de vocês que estou indo. Se eu não for, o Conselheiro não virá para vocês; mas se eu for, eu o enviarei” (Jo 16.7). O período em que Jesus ficaria longe deles seria melhor do que o período em que tinham tido Jesus juntamente com eles fisicamente na Terra. Isso porque o Espírito Santo iria mediar aquele relacionamento íntimo e pessoal entre eles e Deus, relacionamento este que é o âmago do conhecimento cristão.

Naturalmente, não sabemos a seu respeito tudo quanto existe para se saber. Na realidade, existem muitas coisas mais que deveremos aprender. Mas uma vez que o recebemos, conheceremos pessoalmente o absoluto.

Em 1983, tivemos um motim terrível em nosso país. O lar de um jovem hindu que se converteu mediante o ministério da Mocidade para Cristo, foi queimado naquele motim. Ele e sua mãe hindu vieram morar em nosso lar, durante seis meses. Seu irmão e sua irmã ficaram hospedados em outros lares. De modo belíssimo, a irmã também foi convertida a Cristo, e ela e seu irmão estavam prontos para serem batizados na igreja que frequento. (O segundo irmão foi batizado uns poucos anos depois.)

No dia antes do culto do batismo, realizamos um retiro espiritual em nosso lar para aqueles que estavam para ser batizados. A mãe deles frequen- tou as nossas reuniões, pois morava em nosso lar. Escutou o filho e a filha darem testemunho eloquente da sua fé em Cristo. Depois de terem falado, a mãe disse: “Não consigo falar da mesma maneira que meus filhos, pois não recebí escolaridade igual a eles. Não compreendo todas as coisas a respeito do cristianismo que eles compreendem. Mas quero que vocês saibam que o Deus deles é o meu Deus, e que ele é aquele que sigo.” Chamei o pastor e lhe contei o que ela dissera, e que eu acreditava ser ela uma crente genuína. Perguntei-lhe se podíamos fazer uma exceção e batizá-la juntamente com os filhos, embora não tivesse frequentado as aulas necessárias. Ele concordou e ela foi batizada. E hoje, dez anos depois, continua a ser seguidora dedicada

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de Jesus. Havia muitas coisas que ela não sabia a respeito do absoluto. Mas conhecia pessoalmente o absoluto como seu Salvador, Senhor e Amigo.

Certa mulher de idade já avançada na Escócia estava sendo questionada pelo seu pastor, a respeito da suas condições de se tornar membro ativo da igreja. Exclamou: “Senhor, não consigo responder a todas as suas perguntas difíceis. Tudo quanto sei é que estaria bem disposta a morrer por ele.”14 Ela conhecia o absoluto, e esse conhecimento significava tanto para ela que estava disposta a morrer por ele.

Paulo descreveu a imperfeição dos nossos conhecimentos, quando disse: “Agora, pois, vemos um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido” (ICo 13.12). Mas porque conhecemos pessoalmente o absoluto, podemos dizer que conhecemos a verdade absoluta.

Esse conhecimento não é apenas alguma coisa subjetiva. O evangelho de Jesus diz respeito a determinadas coisas que aconteceram na história. Conforme diz Lesslie Newbigin: “O que aconteceu, aconteceu, e nada pode alterar esse fato.”11 Mas, enquanto a verdade não muda, nossa interpretação dela pode variar por causa das nossas falhas humanas. Creio que Deus, que nos deu mentes para pensarmos e sermos criativos, teve a intenção de colo- car-nos diante da realidade. Newbigin indica que é por isso que Jesus nunca escreveu um livro. Em vez disso, temos quatro Evangelhos que retratam Jesus de ângulos diferentes. Newbigin diz que isso é um escândalo para os muçulmanos que acreditam que o Alcorão foi dado diretamente por Deus ao Profeta, em um tipo de inspiração que parece ditado.

No decorrer da história da igreja, portanto, vemos grupos de cristãos que diferiram entre si quanto à maneira de se interpretar diferentes porções da Bíblia. E essa é uma das razões porque temos tantas denominações. E por isso que existem cristãos igualmente sinceros que são calvinistas e ar- minianos, pedobatistas e batistas de adultos; pré, pós e amilenistas, e pré, midi e pós tribulacionistas.

Foi esse o preço que Deus pagou por nos entregar uma verdade pela qual possamos lutar. Quando ele nos fez humanos, ele nos deu criatividade. Quando ele nos deu uma revelação, ele o fez de tal maneira que essa revelação nos dá ampla oportunidade para empregar a nossa criatividade. Atracamo- nos com a verdade, e assim experienciamos a profundidade e a maturidade.

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Por isso, devemos ser humildes no tocante às nossas convicções. Somos dogmáticos a respeito da veracidade da Bíblia. Creio na inerrância das Escrituras, mas não acredito na inerrância da minha interpretação das Escrituras. Estou, portanto, disposto a acolher correções no tocante às minhas convicções, se essas correções demonstrarem ser uma interpretação mais exata da revelação de Deus na Bíblia. Devemos nos lembrar ainda que a Bíblia não nos oferece respostas nitidamente definidas a todas as pergun- tas que determinada geração enfrenta. A Bíblia nos oferece princípios dos quais podemos derivar uma base para a vivência em todas as eras e culturas, mas não nos oferece respostas diretas e específicas a todas as perguntas que enfrentamos na Terra.

Creio que uma das razões pela perda de confiança na verdade absoluta é que alguns que aceitam a inspiração e autoridade absolutas das Escrituras proclamam coisas que não pertencem ao evangelho, com a mesma autoridade com que proclamaram a verdade do evangelho. Nenhuma ideia ou inter- pretação pode tomar o lugar da autoridade contida na Bíblia. Mas, às vezes, apresentamos as nossas opiniões e interpretações como se fossem a verdade do evangelho. Embora saibamos que todo e qualquer sistema político, seja capitalista, socialista ou comunista tem falhas, em ocasiões diferentes um só determinado sistema é apresentado como a alternativa totalmente cristã. E quando esses sistemas fracassam, e as pessoas os deixam de lado, também deixam de lado a crença de que o cristianismo é a verdade. Algo semelhante acontece, quando as pessoas apresentaram a sua interpretação a respeito do cronograma e dos eventos que antecederão a segunda vinda de Cristo, como a única alternativa aceitável para os cristãos verdadeiros. O mesmo também acontece com questões éticas, a respeito das quais a Bíblia não oferece di- retrizes específicas. Quando as pessoas rejeitaram a interpretação, também rejeitaram a Bíblia da qual essas interpretações supostamente se derivaram. A interpretação fora apresentada com uma autoridade e dogmatismo que pertencem exclusivamente às Escrituras.

A revelação é proposicional e pessoal

Antes de continuar, examinaremos uma declaração que Cristo fez em João 14.11. Jesus ordena a seus discpúlos: “Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim.” Declaramos, anteriormente, que nosso conhecimento da verdade absoluta é o conhecimento de Jesus e é

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expresso em um relacionamento. Dissemos também que existe muita coisa para ser aprendida e que existe diversidade de interpretações a respeito de certas questões dentro da igreja. Isso não significa que os fatos no tocante a Jesus não são importantes. Existem na revelação proposições a respeito das quais não poderá haver meio-termo, e a verdade no tocante ao relacio- namento entre Jesus e Deus é uma delas. Por isso, ele os ordena: “Creiam em mim, quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim.” Essa é uma proposição a ser crida.

Alguns teólogos modernos nos dizem que a revelação não vem em proposições, mas que é uma revelação da pessoa de Deus. Por isso, dizem que as proposições não são importantes. Em resposta a isso, Leon Morris pergunta, com toda a razão: “Como poderemos conhecer a Deus, sem conhecermos alguma coisa a seu respeito?”16 E como poderemos exprimir o que sabemos a seu respeito, sem alguma proposição, como “Deus é amoroso” ou “Deus é santo?”. Morris diz: “Quanto mais puder saber a seu respeito, tanto mais poderei conhecê-lo.”17

Naturalmente, existe um intercâmbio dinâmico entre as proposições e a nossa experiência pessoal da verdade. Mas aquele assunto está além do escopo deste livro. Por enquanto, afirmaremos a conclusão em favor da qual temos argumentado até aqui em nossa defesa da supremacia de Jesus: Jesus é a verdade absoluta, porque ele é Deus.

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1 Wesley Ariarajah: The Bible and People of Other Faiths (Geneva: World Council of Churches, 1985), 27.

2 Leon Morris: Reflections on the Gospel of John, vol. 3 (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1988), 495.

’ William Barclay: The Gospel of John, vol. 2 (Philadelphia: Westminster, 1975), 159.

4 Morris: Reflections, 496.

5 F. F. Bruce: The Gospel of John (England: Pickering and Inglis; Grand Rapids: Mich.: Eerd- mans, 1983), 40.

(’D. A. Carson: The Gospel According to John (Leicester: Inter-Varsity Press; Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1991), 127. Em português: O evangelho de Joao, Shedd Publicações.

’Ibid., 128.

8 Peter T. O’Brien: Colossians and Philemon, vol. 44, Word Biblical Commentary (Waco, Tex.: Word, 1982), 111.

יי Ver John Hick: “Jesus and the World Religions,” em The Myth of God Incarnate, ed. John Hick

(London: SCM Press, 1977), 167-85.

1″Ibid.

11 Carl Laney: Moody Gospel Commentary on John (Chicago: Moody Press, 1992), 20.

12 De E. Stanley Jones: The Christ of the Indian Road (1925), em Selections from E. Stanley Jones (Nashville: Abingdon, 1972), 224.

” R. C. H. Lenski: The Interpretation of St. John’s Gospel (1942; reimp. Minneapolis: Augsburg, 1942), 1121.

14Stephen Neill: The Supremacy of Jesus (London: Hodder and Stoughton, 1984), 69.

15Lesslie Newbigin: Truth To Tell (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1991), 6-7.

16 Leon Morris: I Believe in Revelation (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1976), 115.

17Ibid., 115.

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CAPÍTULO 3

Sugs pglgvtgs gfirmgm que ele é gbsoluto

Até essa altura, vimos que, de acordo com o Evangelho de João, Je- sus é igual a Deus, portanto, é a verdade absoluta. Mas tudo isso é fictício? Como podemos saber que aquilo que João registrou como declaração de Jesus a respeito de si mesmo e seu relacionamento com Deus é a verdade? Essa pergunta nos ocupará no decorrer desses próximos capítulos.

Por que cremos que Jesus é o absoluto?

Em João 14.10b-ll, Jesus substancia sua afirmação à igualdade com Deus. Diz: “As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Pelo con- trário, o Pai, vivendo em mim, está realizando a sua obra. Creiam em mim, quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim; ou pelo menos creiam, por causa das mesmas obras.” Jesus oferece duas evidências para sustentar sua declaração de que é igual a Deus. A primeira é as suas palavras (v. 10b). A segunda é as suas obras (v. 11).

O RELACIONAMENTO ENTRE JESUS E O PAI

Antes de examinarmos de perto essas duas razões, precisamos pes- quisar uma implicação que podería ser feita do v. 10b, que diz: “As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Pelo contrário, o Pai, vivendo em mim, está realizando a sua obra.” Alguns talvez pensem que esse versículo, e outros semelhantes, sugerem que Jesus não é divino, pois apresenta Jesus como distinto do Pai, embora esteja intimamente relacionado com ele. Grupos que negam a divindade de Cristo, como as Testemunhas de Jeová e os muçulmanos, com frequência empregam esse tipo de declaração para reforçar os seus argumentos.

Quando olhamos o Evangelho de João como um todo, vemos apre- sentada uma natureza dual de Jesus sem muita especulação sobre como essas

duas naturezas coexistem entre si. Jesus é apresentado como plenamente humano, portanto, distinto do Pai. Mas também é plenamente divino, assim um só com o Pai. João 5.17-19 é um exemplo claro desse fato: “Disse-lhes Jesus: ‘Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando’ ” (v. 17). O versículo que se segue demonstra que seus seguidores percebem as implicações dessa declaração: “Por essa razão, os judeus mais ainda queriam matá-lo, pois não somente estava violando o sábado, mas também estava até mesmo dizendo que Deus era seu próprio Pai, igualando-se a Deus.” Por isso, Jesus explica ainda mais o sentido das suas palavras: “Jesus lhes deu esta resposta: ‘Eu lhes digo verdadeiramente que o Filho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai fazer, porque o que o Pai faz, o Filho também faz’ ” (v. 19).

Leon Morris diz que o v. 19 contém “o conceito da subordinação, pois o Filho é retratado como totalmente obediente ao Pai.” Juntamente com isso “há também uma afirmação poderosa, porque o Filho faz tudo quanto o Pai faz.” Morris diz: “Nem a humilde obediência, nem a implicação da divindade deve passar desapercebida.”1

  1. E. Ladd oferece um resumo útil de como Jesus lida com a verdade dupla de sua humanidade e de sua divindade.

Podemos concluir que Joao retrata Jesus com dois modos de compreensao, sem reflexao nem especulacao. Jesus e igual a Deus; e realmente Deus na carne; entretanto, e plenamente humano. Joao fornece alguns dos materiais biblicos em favor da doutrina posterior da natureza dupla de Jesus, mas Joao nao se interessa por semelhantes especulacoes. Relata com memoria firme o impacto que Jesus fez, sem se dar ao luxo de fazer perguntas especulativas.2

Assim, devemos acrescentar que existem trechos no Novo Testamento onde Jesus é explicitamente apresentado como Deus em essência. Esse fato será considerado no capítulo seguinte.

No tocante à evidência de que Jesus é igual a Deus, João 14.10b diz: “As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Pelo contrário, o Pai, vivendo em mim, está realizando a sua obra.” Quando Jesus fala, trata-se do Pai que está operando através dele. Teríamos esperado que Jesus dissesse: “o Pai fala através de mim.” Em vez disso, diz: “o Pai, vivendo em mim, está realizando a sua obra.” Assim, conforme o arcebispo William Temple expressa o caso: “As palavras de Jesus são obras de Deus.”3

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O que Jesus está dizendo aqui é que devemos levar as suas palavras a sério, pois quando ele fala, Deus fala. Suas palavras autenticam as suas afirmações à divindade. O valor autenticador das palavras de Jesus acha-se em duas áreas. Primeiro: sua relevância e introspecção penetrante sugerem que quem está falando não é uma pessoa comum e que nela se acha a resposta de Deus aos problemas da vida. Existe atração admirável nos seus ensinos. Segundo: suas declarações a respeito de si mesmo nos deixam com a con- clusão inescapável de que ele se considerava igual a Deus.

O atrativo dos ensinos de Jesus

Jesus diz que suas próprias palavras devem mostrar às pessoas que o que ele declara a respeito de si mesmo é a verdade. No decorrer dos vinte séculos desde que Jesus vivera na Terra, as pessoas chegam a essa conclusão como resultado de ler os Evangelhos. Ouvi uma história a respeito de um jovem não-cristão que estava estudando inglês e que usava para leitura um dos Evangelhos. De repente, levantou-se da cadeira no meio de uma lição e ficou andando de lá para cá no meio da sala, e disse: “Essas não são as palavras de um homem, são as palavras de Deus.”

Francis Cornford era uma poetisa inglesa e neta de Charles Darwin. Fora criada para acreditar que a religião era uma coisa boa para algumas pessoas, mas não para os Darwin. Quando os seus filhos começaram a lhe fazer algumas perguntas difíceis a respeito da religião, concluiu que era necessário obter algumas informações, e assim foi consultando o Novo Testamento. Pouco tempo depois, observou a um amigo: “Sr. Angus, estive lendo os Evangelhos, e descubri que as coisas que Jesus disse a respeito de Deus são verdadeiras.”4

Seus ensinos eram profundos, porem singelos. Conforme disse o bispo Stephen Neill: “A qualidade de singeleza percorre boa parte dos ensinos de Jesus. E talvez esse fato que tenha dado às suas palavras seu poder extraordinário para comover os corações de homens e mulheres durante cerca de vinte séculos.”5 “E a grande multidão o ouvia com prazer” (Marcos 12.37). “Todos os publicanos e ‘pecadores’ estavam se reunindo para ouvi-lo” (Lucas 15.1). Os guardas do templo que foram enviados para prender Jesus voltaram sem ele. E quando os chefes dos sacerdotes lhes perguntaram: “Por que vocês não o trouxeram?”, responderam: “Ninguém jamais falou da maneira como esse homem fala” (João 7.46). W Griffith Thomas ressalta que é notável que

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nenhuma parte dos ensinos de Jesus teve que ser omitida, depois de tantos séculos de descobertas.6

Neill contrasta os ensinos de Jesus com as de Gautama, o Buda, que “proveio de linhagem principesca; [e] que através de todos os registros marcha como uma pessoa muito superior.” As complexidades da metafísica budista são para a elite intelectual, além do alcance das pessoas comuns. É por isso que o budismo se mantém vivo mediante a ordem religiosa de monges e freiras, que Neill chama de “uma aristocracia específica.” Da mesma forma, Platão era um aristocrata. Seu “pensamento posterior nos leva a um mundo difícil de pensamento, no qual o soldado, o marinheiro, o o encanador e o alfaiate não podem facilmente se encaixar.”7

Antes do seu ministério público, Jesus vivera como uma pessoa co- mum, um carpinteiro. Durante seu ministério, convivia com pessoas de todos os tipos. Ele sabia o que acontecia na vida das pessoas comuns. Conversei a respeito de Cristo com um budista que estava sentado ao meu lado, em uma recepção de casamento. Ele me disse: “Cristo é superior ao Buda, porque sabia o que era a pobreza. Não foi criado em um palácio para então renunciar aquela vida, conforme fez o Buda.” Não consegui entender plenamente o sentido das suas palavras. Tinha estudado em uma escola católica romana, por isso, sabia muitas coisas a respeito de Jesus. Pensei, depois, que talvez quisesse dizer que Jesus era superior, porque vivia e ensinava como quem se identificava com as pessoas comuns.

Seus ensinos contêm histórias abundantes que refletem a vida diária

real:

* Um rico cujos dois filhos demonstravam total complexidade de emocoes humanas.

* Uma mulher pobre que perdera uma moeda preciosa e que estava deses- perada para acha-la.

* Um lar onde apareceu uma visita, e nao havia comida para lhe oferecer.

* Um homem que fora supreendido por assaltantes e as pessoas que evi- tavam prestar-lhe socorro.

* Uma viuva pobre e um juiz que nao se importava.

* Um rico que vivia em esplendor e um mendigo que vivia das migalhas da sua mesa.

* Um jantar que as pessoas querem assentar-se nos assentos de maior destaque.

* Convidados que mandam recados para desculpar a sua ausencia de uma recepcao.

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* Um gerente astuto que conquista o apoio de pessoas que poderao ajuda- lo, quando ele ficar sem emprego.

* Um fazendeiro rico que faz uma poupanca suficiente para se aposentar em conforto.

  1. T. France diz: “Um dos segredos do atrativo dos ensinos de Jesus, no decorrer de tantos séculos, é que tem alicerce firme na vida comum diária e nas características imutáveis do caráter humano.”8

Portanto, o maior santo, o cristão bíblico mais poderoso pode ser uma pessoa com escolaridade mínima. Ter escolaridade mínima não incapacita a pessoa a compreender os ensinos de Jesus. Gosto de pensar em mim mesmo como professor da Bíblia. Estudei a Bíblia com estudiosos profissionais, e li e ensinei muitas coisas a respeito da Bíblia. Mas considero minha mãe como a professora bíblica que mais influenciou a minha vida. Tudo quanto aprendí foi edificado no alicerce por ela colocado. Ela não recebeu treinamento bíblico formal. Foi, na realidade, uma convertida do budismo que foi apresentada a Cristo, quando ainda estava na adolescência. No entanto, tinha uma Bíblia à disposição, e se tornou professora eficaz da Bíblia.

Desejo dizer que, para aqueles entre nós que estamos no ministério, 0 preco da singeleza e envolver-nos nos assuntos das pessoas. E isso é muito difícil nessa era dos especialistas. Podemos nos considerar como especialistas em determinada disciplina, e depois nos ressentir de sermos obrigados a fazer coisas que, segundo pensamos, não se relacionam com a nossa especialização. Fazer assim é especialmente difícil para um pastor que acaba de se formar em uma escola teológica e que tem muitas expectativas. Pensemos na pessoa com uma vocação para pregar ou ensinar. Como gostaríamos de ter horas ininterruptas de estudo! No entanto, o pregador ou mestre é um servo do povo, conforme disse Paulo (2Co 4.5). As necessidades das pessoas podem tirar horas do tempo que tínhamos separado para o estudo ininterrupto. Por outro lado, ministrar às pessoas fornece o contexto a partir do qual pregamos e ensinamos. Sem isso, talvez produziremos bastante material excelente, mas esse material estará destituído da introspecção penetrante, que é necessária para levar a efeito a mudança para o bem na vida e nos pensamentos das pessoas.

Boa parte dos pensamentos grandiosos na história da igreja surge de pessoas que, embora fossem ativas no ministério, dedicaram tempo ao estudo e à escrita. Consideremos o apóstolo Paulo, Agostinho, Martinho

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Lutero, João Calvino, Jonathan Edwards e João Wesley. Todos estes eram pensadores grandemente influentes que faziam sua teologia dentro do con- texto do ministério ativo.

A história de Agostinho é especialmente interessante. Tinha uma comunidade pequena, em um lugar chamado Tagaste, onde ensinava a Bíbllia e conseguia dedicar-se a uma vida contemplativa. Tinha receio do pastorado, porque sabia que privaria do tempo de reflexão que desejava. Era um bom pregador, e recebia convites frequentes para pregar; mas não aceitava comparecer nas igrejas onde não havia pastor. Tinha medo de ser convidado a mudar para lá, a fim de ser pastor ali!

Certa vez, pediram que Agostinho fosse para Hipônia, a fim de aconselhar alguém. Não sentia receio em ir para lá, pois havia um pastor, o bispo Valério, em Hipônia. Entrou na igreja para ouvir o bispo pregar, e o bispo, vendo-o, disse à congregação que havia necessidade urgente de um segundo homem ordenado ali. “Imediatamente, a congregação lançou mãos em Agostinho e o levou para a frente entre aclamações gerais. Não havia fuga […] Foi ordenado ali mesmo.” Começou a chorar. Alguns achavam que estava chorando, porque não foi consagrado bispo de imediato. “O motivo verdadeior era que sabia que a ordenação envolvería o fim do seu sonho de uma vida cristã tranquila, recolhida das pressões e lutas do mundo.”9

Serviu em Hipônia até à sua morte, quase quarenta anos depois. Que grande influência exerceu esse único homem! E considerado como “o maior teólogo cristão desde o apóstolo Paulo.”10 Alguns dos seus livros demoraram muito para ser escritos por causa das pressões do ministério. Um deles: Da Trindade・, lhe custou dezessete anos para terminá-lo. Teve que deixar de lado esse empreendimento todas as vezes que atravessava o seu caminho um desafio que precisava ser enfrentado.11 A solidão que Agostinho desejava, só a conseguiu nos últimos dez dias da sua vida, quando, confinado à sua cama, pediu para não ser perturbado.12

Com frequência me queixo de como meus grandiosos planos de estudo são “arruinados” pelos desafios no ministério. Em uma dessas oca- siões, um colega me fez lembrar uma declaração que lera: “Queixava-me a respeito das interrupções no meu trabalho, até o momento em que Deus me disse que essas interrupções eram o meu trabalho.” Por mais difíceis que essas “interrupções” sejam para mim, posso dar testemunho da veracidade daquela declaração e também dizer que poucas coisas me ajudam no meu

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ministério mais do que essas amolações perturbadoras, conforme pareciam ser na ocasião.

Os ensinos de Jesus, portanto, eram relevantes porque ele andava entre as pessoas e sabia o que havia no seu íntimo. Entretanto, existe uma profundidade nos ensinos de Cristo que vai alem de tudo quanto possamos sondar. Por mais que a pessoa aprenda, existe muito mais coisa a ser aprendida. Há diante de nós, portanto, uma peregrinação emocionante — uma que durará até chegarmos ao céu. Recebí uma carta de um dos grandes pregadores dos Estados Unidos, pertencente a uma geração anterior: Paul S. Rees. Ele me ajudara a obter uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, e mantivêramos correspondência desde aquela ocasião. Em uma carta que me escreveu pouco antes de morrer, disse: “Estou com noventa anos de idade e contínuo sendo aluno na escola de Cristo!” Paulo disse: “Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e inescrutáveis os seus caminhos!” (Rm 11.33).

Recomendo a você essa busca de uma porção maior da verdade. E uma das experiências mais emocionantes da vida, pois estamos lidando com aquilo que mantém a chave do significado da vida, com aquilo que abre a porta à mais grandiosa de todas as experiências: o conhecimento de Deus.

Os ensinos de Jesus, portanto, eram incomparáveis, porque eram profundamente singelos e relevantes à nossa experiência. Apresentam-se como a resposta que o Criador da vida ofereceu à necessidade humana. E isto confirma a sua divindade.

As declarações de Jesus a respeito de si mesmo

Existe outro lado dos seus ensinos. O que Jesus disse, nenhum ser humano comum podería dizer em são juízo.

Calava com grande autoridade. Pouco antes da sua ascensão, Jesus disse aos seus discípulos: “Foi-me dada toda autoridade no céu e na terra” (Mt 28.18). O modo que falava era apropriado para quem tinha direito a fazer essa afirmação. A respeito dos seus ensinos, disse: “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão” (Mt 24.35). Depois do Sermão no Monte “as multidões estavam maravilhadas com o seu ensino, porque ele as ensinava como quem tinha autoridade, e não como os mestres da lei” (Mt 7.28-29). R. T. France diz: “Qualquer outro mestre judaico certificava-se muito bem de que seus ensinos eram documentados com citações extensivas

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das Escrituras, e com o acréscimo dos nomes dos seus professores para dar mais peso à sua opinião; a sua autoridade era sempre derivada de segunda- mão. Mas não era assim com Jesus. Simplesmente determinava a natureza da lei.”13 Não dizia: “As Escrituras dizem” ou “Rabino X diz,” conforme diziam os mestres naqueles tempos. Pelo contrário, falava: “Eu digo.”

Seis vezes no Sermão do Monte, achamos uma sequência no seguinte padrão: Jesus diz: “Vocês ouviram o que foi dito […]” seguido por uma cita- ção do Antigo Testamento. Depois, diz: “Mas eu lhes digo […]” e segue-se uma modificação do princípio veterotestamentário.14

Ele introduzia suas declarações de importância mais notável com as palavras: “Em verdade, em verdade […]” (“Digo-lhes a verdade […]” na NVI). Os Evangelhos originais (em grego) registram esse fato, por meio de trans- literar as palavras aramaicas: “Amen, amen. ” Essa expressão aparece setenta e oito vezes nos Evangelhos (cifra reduzida a cinquenta e nove ocorrências, no caso de subtrairmos os paralelos em mais de um evangelho). O estudioso alemão do Novo Testamento, Joachim Jeremias, diz que esse emprego de amen, amen “para reforçar as palavras de quem fala […] não tem paralelo na totalidade da literatura judaica e no restante do Novo Testamento.”15 Diz que “a única analogia substancial ao que se pode oferecer é a fórmula do mensageiro: Assim diz o Senhor,’ que é usada pelos profetas para declarar que suas palavras não provêm da sua própria sabedoria, mas que são uma mensagem divina.”16 Jeremias diz que o que temos aqui é uma consciência da majestade, expressa em uma afirmação à onipotência divina.17

Declarava ter a autoridade para perdoar pecados. Quando perdoava os pecados de um paralítico e as pessoas questionavam seu direito de fazer isso, Jesus comprovou o fato pela operação de um milagre. Disse que as- sim fazia para que saibam que o Filho do homem tem, na terra, autoridade para perdoar pecados” (Mc 2.10). O homem foi curado, e todos “ficaram atônitos e glorificaram a Deus, dizendo: ‘Nunca vimos nada igual!’ ” (v. 12).

Nao dispa as pessoas: “Sigam os meus ensinos” meramente — ele dispa: “Sigam- me” e exigia a lealdade total. Disse: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10.37-38; ver também Lucas 14.26).

Assumia titulos que eram atribuidos a Deus no Antigo Testamento. O Salmo 27.1 diz: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação” (ver também Is 60.20). Jesus disse: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8.12). O Salmo 23.1 diz:

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“O Senhor é o meu pastor” (ver também Ez 34.15). Jesus disse: “Eu sou o bom pastor” (Jo 10.11).

Jesus se considerava digno de recebera honra que se devia a Deus. Isaías 42.8 diz: “Eu sou o Senhor; este é o meu nome! Não darei a outro a minha glória nem a imagens o meu louvor” (ver também Is 48.11). Jesus orou: “Pai, chegou a hora. Glorifica a teu Filho, para que o teu Filho te glorifique […] E agora, Pai, glorifica-me junto a ti, com a glória que eu tinha contigo, antes que o mundo existisse” (]o 17.1,5). Disse: “Além disso, o Pai a ninguém julga, mas confiou todo julgamento ao Filho, para que todos honrem o Filho como honram o Pai. Aquele que não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou” (Jo 5.22-23).

Declarava ter um relacionamento incomparavel com Deus como Filho do Pai. Chamava a si mesmo de Filho de Deus, e chamava Deus de “meu Pai.” “Meu Pai” não é o modo de os judeus normalmente se referirem a Deus. Falavam, sim, em “nosso Pai,” e embora pudessem empregar “meu Pai” nas orações, normalmente o qualificavam com algo como “no céu” para remover a sugestão da familiaridade. Jesus não fez nada semelhante, nem no presente texto, nem em lugar algum.”18 As várias referências a esse relacionamento nos Evangelhos demonstram que Jesus queria deliberadamente ensinar que se tratava de um relacionamento que nenhum outro ser humano podia ter com Deus. Quando Jesus apaziguou a tempestade e os discípulos ficaram sabendo que ele era mais do que um ser humano comum, “o adoraram.” Naquela ocasião a sua conclusão foi: “Verdadeiramente tu és o Filho de Deus” (Mt 14.33).

Declarava ser 0 jui\ da raca humana conforme subentende a declaração acima citada (ver Jo 5.23). Disse, certa vez: “Quando o Filho do homem vier em sua glória, com todos os anjos, assentar-se-á em seu trono na glória celestial” (Mt 25.31). Em seguida, passou a descrever como ele julgará as nações (v. 32-46). A respeito de si mesmo, diz: “E deu-lhe autoridade para julgar, porque é o Filho do homem” (João 5.27). Leon Morris indica que “Se Jesus era algo menos do que Deus, fessa] é uma afirmação totalmente sem base.” Morris diz: “Nenhuma criatura pode determinar o destino eterno das criaturas, suas iguais.”19

Di^ia que 0 destino eterno das pessoas dependia do seu relacionamento com ele. Depois do seu convite básico para as pessoas negarem a si mesmas, tomarem a cruz e o seguirem, ele disse: “Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá,

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mas quem perder a vida por minha causa e pelo evangelho a salvará. Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou o que o homem poderia dar em troca de sua alma?” (Mc 8.35-37).

Di^ia que ele nos daria coisas que somente Deus pode dar. Disse: “Pois, da mesma forma que o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida, o Filho também dá vida a quem ele quer dá-la” (Jo 5.21; ver também Jo 11.25). Disse tam- bém que daria “água a jorrar para a vida eterna” (]o 4.14). Falou em dar “a minha paz” (Jo 14.27) e “a minha alegria” (Jo 15.11). Entre as declarações “Eu sou” em João, achamos Jesus dizendo que ele dará o pão da vida (Jo 6.35), a luz da vida (Jo 8.12), e o sustento necessário para darmos fruto (Jo 15.1-8). Diz que ele é a porta à salvação (Jo 10.7-9) e o caminho à salvação (Jo 14.6) e à vida que vence a morte (Jo 11.25-26).

O EMPREGO, POR JOÃO, DO PRONOME ENFÁTICO PARA JESUS

João emprega a expressão ego eimi (em grego) (“Eu sou”) trinta vezes ao registrar as declarações de Jesus. Posto que a relevância desse fato faça parte da maneira de João expressar em grego as palavras de Jesus, não poderemos incluí-la nessa seção a respeito das afirmações de Jesus. Não deixa, porém, de ser relevante ao nosso estudo. Em grego (como também em português) a desinência do verbo indica o sujeito. Quando vemos a forma sou, sabemos que o sujeito é eu. Assim acontece o tempo todo em grego. Portanto, se o sujeito de uma frase é um pronome, tal como eu, ele ou nos, fica oculto na forma verbal. Em uma declaração como “Eu sou o pão,” portanto, bastaria dizer “Sou o pão.” Mas caso queira enfatizar o sujeito, então usa-se o pro- nome enfático. Assim fez João trinta vezes nas declarações “Eu sou” feitas por Jesus. Podemos dizer que essa forma foi usada, porque João queria atribuir-lhe ênfase especial.

Na tradução em grego do Antigo Testamento (a Septuaginta), que era muito popular entre os cristãos no século I, quando os tradutores chegavam a palavras faladas diretamente por Deus, “pensavam, segundo parece, que deviam ser traduzidas de modo direto das palavras faladas por [seres hu- manos].” Por isso “tendiam a empregar a forma enfática com o pronome Έu. ’ 2° ״ Seria o caso dos Dez Mandamentos, quando começávamos assim:

“Tu não farás […]”.21 Semelhantemente, eles teriam considerado apropriado empregar o pronome enfático ao citar as palavras de Deus. Assim, Deus citou seu próprio nome a Moisés em Êxodo 3.14 “Eu sou quem eu sou”, que são

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as palavras usadas na Septuaginta, não no hebraico. Quando, portanto, João registrava declarações de Jesus com o pronome enfático estava usando “o estilo da divindade.”22 Esse foi um dos modos de João demonstrar que Jesus era mais do que um ser humano. Estava querendo indicar que as palavras usadas para a divindade eram apropriadas para Jesus.

Com frequencia, de modos diferentes, declarava ser igual a Deus, conforme já vimos.

* Dissemos acima que o estilo da divindade acha-se nas declaracoes “Eu sou” de Joao. Mas existe uma dessas declaracoes na qual ha uma impli- cacao mais especifica da divindade. Em Joao 8.58 Jesus diz: “Eu lhes afirmo [amen, amen], antes de Abraao nascer, Eu Sou!” Disse: “Eu sou” em vez de “Eu era.” Essa expressao indica “eternidade da existencia, e nao simplesmente existencia que durou varios seculos.”23 Depois de fazer consideracoes a respeito do contexto biblico que ilumina o significado dessa declaracao de Jesus, Donald Guthrie diz: “Parece haver pouca duvida de que [ela] visa dar a entender, de modo extraordinario, qualidades divinas tais como imutabilidade e pre-existencia.”24 Os ouvintes de Jesus entendiam que se tratava de uma afirmacao a divindade, e Joao diz que “Entao eles apanharam pedras para apedreja-lo, mas Jesus escondeu-se e saiu do templo” (Jo 8.59).

* Mandou os discipulos batizar as pessoas “em nome do Pai e do Filho e do Espirito Santo” (Mt 28.19), indicando, assim, a igualdade entre as tres pessoas da Trindade. E significante que 0 nome esta no singular. Esse fato sublinha “a unidade entre as tres Pessoas.”25

* Quando Tome viu Jesus depois da sua ressurreicao, exclamou: “Senhor meu e Deus meu!” (Jo 20.28). Empregou duas atribuicoes divinas: “Senhor” e “Deus.”26 Jesus deveria ter protestado contra isso, se nao fosse Deus.

Em vez disso, dirige-se a Tome com uma palavra de aprovacao e elogia todos aqueles que chegarem a mesma conclusao, sem sequer terem visto a Jesus.

* Jesus disse que, quando o vemos, vemos a Deus, conforme demonstram as seguintes declaracoes: “Quem me ve, ve aquele que me enviou” (Jo 12.45); “Voce nao me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com voces durante tanto tempo? Quem me ve, ve ao Pai. Como voce pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai?” (Jo 14.9).

* Ele disse: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30).

OBJEÇÕES AO USO DE JOÃO ΙΟ.βΟ

Existem alguns que acham que esse versículo fala de uma harmonia que é menos do que a identidade de essência. Aqueles que não aceitam a divindade de Cristo dizem que João 10.30 está falando de uma união semelhante àquela

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que é mencionada em João 17.22: “para que sejam um, assim como nós somos um.” Seu argumento é que a união entre o Pai e o Filho é da mesma qualidade da união dos cristãos dentro do corpo – ou seja, uma união de propósitos e de ações. Respondendo a isso, Don Carson diz: “Em 17.22, a ordem da comparação não é recípocra. A união entre o Pai e o Filho é a realidade segundo a qual a união entre os crentes deve ser medida, e não vice-versa […] E assim como qualquer analogia que gera uma comparação, a analogia não pode ser forçada ao ponto do esgotamento.”27

João 10.30 talvez não seja uma declaração inconfundivelmente exata da identidade total entre o Pai e o Filho. Quando, porém, examinamos essa declaração da perspectiva do restante do livro, que diz que a Palavra é Deus, e que Tomé chamou Jesus de “Deus,” não é difícil concluir que algo mais do que a simples união de propósito está sendo referido aqui. Esse conceito é substanciado pelo fato de os judeus tentarem apedrejá-lo depois de ele ter feito essa declaração. Se Jesus quisesse dizer que suas palavras e ações eram reguladas segundo a vontade de Deus, os judeus não teriam considerado como blasfêmia essa declaração.28 Alcançar a vontade de Deus era um dos alvos da religião judaica. Aqui, porém, os judeus acusaram Jesus de “se apresentar como Deus” (Jo 10.33).

Como resposta diante da ira dos judeus, Jesus citou os Salmos e disse: “Não está escrito na Lei de vocês: ‘Eu disse que vocês são deuses’?” (Jo 10.34). Essas palavras são usadas por grupos como as Testemunhas de Jeová e os muçulmanos para negar a divindade de Cristo. Dizem que, quando João diz que Jesus é Deus, é em um sentido diferente daquele que os cristãos trinitarianos reivindicam. Devemos nos lembrar de que, aqui, Jesus estava em um debate. Jesus continua e diz: “Se ele chamou ‘deuses’ àqueles a quem veio a palavra de Deus — e a Escritura não pode ser anulada — que dizer a respeito daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo? Então, por que vocês me acusam de blasfêmia, porque eu disse: ‘Sou Filho de Deus’?” (Jo 10.35-36).

Conforme demonstra Don Carson, Jesus está dizendo que “esse texto das Escrituras comprova que a palavra ‘deus’ é usada legitimamente para referir-se a outros que não sejam o próprio Deus. Se existem outros a quem Deus (o autor das Escrituras) pode chamar de ‘deuses’ e ‘filhos do Altíssimo’ (i.é, filhos de Deus), com qual base bíblica alguém deve objetar, quando Jesus diz: ‘Eu sou Filho de Deus.’?”29 A questão levantada aqui por

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Jesus é que o “comissionamento divino permite aos indivíduos usarem o título divino.”31’ Os estudiosos do Novo Testamento nos explicam que Jesus está usando um argumento tipicamente rabínico para responder aos seus acusadores.”31 Conforme explica William Barclay: “Esse é um dos argu- mentos bíblicos cujo impacto é difícil para nós sentirmos; mas convencería inteiramente um rabino judaico.”32

Seus oponentes, os lideres judaicos, entendiam as implicacoes das suas afirmacoes. Em um debate a respeito do Sábado, Jesus fez a declaração: “Meu Pai con- tinua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando.” O versículo seguinte diz: “Por essa razão, os judeus mais ainda queriam matá-lo, pois não somente estava violando o sábado, mas também estava até mesmo dizendo que Deus era seu próprio Pai, igualando-se a Deus” (5.17-18). Quando Jesus disse: “Eu lhes afirmo que antes de Abraão nascer, Eu Sou!” […] apanharam pedras para apedrejá-lo (Jo 8.58-59). Em outra ocasião, quando os judeus “pegaram em pedras para apedrejá-lo” (Jo 10.31), explicaram a sua ação, dizendo: “Não vamos apedrejá-lo por nenhuma boa obra, mas pela blasfêmia, porque sendo um simples homem se apresenta como Deus” (Jo 10.33).

As considerações acima demonstram que existem muitas maneiras diferentes de as declarações de Jesus subentenderem a sua divindade. Al- gumas proclamam explicitamente a sua divindade. Em outros casos, é im- plícita. Mas a implicação é necessária, especialmente no quarto Evangelho, no qual esses casos devem ser somados às declarações explícitas a respeito da sua divindade.

Alguém disse a respeito das palavras de Cristo: “Se não é a autoridade sobre-humana que nos fala aqui, certamente é arrogância sobre-humana.” ” Uma pessoa chamada Bronson Alcott disse, certa vez, ao escritor escocês Thomas Carlyle, que podia sinceramente usar as palavra de Jesus: “Eu e o Pai somos um.” Carlyle respondeu assim: “Sim, mas Jesus conseguiu que o mundo cresse nele.”34

Não pode haver dúvida de que Jesus se considerava o absoluto. Existem aqueles que rejeitam essas declarações, por aparecerem em João, que é um documento altamente teológico, mas não deve ser entendido como relato objetivo daquilo que Jesus disse. Refutarei essa alegação no Capítulo 6 dessa obra. Por enquanto, direi apenas que esse quadro de incomparabilidade não provém exclusivamente do Evangelho de João. Demonstrei no meu livro The Christian’s Attitude Toward World Religions [A atitude do cristão em relação às religiões do mundo] que os três primeiros Evangelhos também proclamam com clareza essa verdade.35

A característica notável no tocante aos ensinos de Jesus é quão estreitamente se associam com sua própria pessoa. “Não existe nenhuma palavra nas suas doutrinas que ele não faz depender, de alguma maneira, da sua própria pessoa.”36 Muitas pessoas, como Mahatma Gandhi, que têm a vida e ensinos de Cristo em alta estima, nem por isso deixam de rejeitar as suas afirmações pessoais à divindade. Dizem que o princípio tem prioridade sobre a pessoa. O que importa é a doutrina muito mais que a pessoa que a comunicou. 37 Semelhante abordagem, porém, não é possível com os ensinos de Cristo. Nesse caso, 0 principio e a pessoa. Conforme indica Griffith Thomas: “É difícil achar um trecho dos Evangelhos, sem surgir uma asseveração de Jesus a respeito da sua própria pessoa, em conexão com os seus ensinos. Realmente não se pode fazer separação entre sua mensagem e suas afirma- ções.”38 Quem remover suas afirmações, terá também que remover a sua vida e ensinos. Esses três estão de tal forma estreitamente vinculados entre si que não é possível remover um deles e manter os outros.

A resposta muçulmana às afirmações de Cristo

Os muçulmanos consideram as reivindicações de Cristo à igualdade com Deus, de modo muito semelhante à reação dos judeus que eram contemporâneos de Cristo. Mas, diferentemente daqueles judeus, eles tratam Jesus como profeta. 39 O Alcorão aceita o seu nascimento virginal e os seus milagres, e Jesus é o único a ser descrito como impecável no Alcorão. Chama-o “o Messias,” “a Palavra de Deus,” “a declaração segura,” “um espírito enviado da parte de Deus,” “o Servo de Deus,” e “o Profeta de Deus.” As Tradições, que são a fonte de autoridade mais importante depois do Alcorão no islamismo, descrevem Cristo como intercessor no céu e como juiz.

Por outro lado, o islamismo rejeita algumas declarações fundamentais de Cristo a respeito da sua própria pessoa. A pedra de tropeço principal é a divindade de Cristo. No islamismo, existe um só pecado que Deus não pode perdoar: é a associação de parceiros com Deus. Deus é considerado tão transcendente e indescritivelmente grande, e uma só unidade, que associar um ser humano com Deus é o pecado imperdoável que chamam de shirk. No Alcorão, é aplicado ao conceito da Trindade. Fala com horror a respeito da ideia de Deus ter um filho.

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É possível que o profeta Maomé tivesse sido exposto a um conceito subcristão da Trindade. Ele mesmo pode ter rejeitado a ideia de que a Trindade consistisse no Pai, Jesus e Maria e a ideia de que o relacionamento entre o Pai e o Filho fosse meramente físico, e de que Deus tivesse se casado e tido um filho. O estudioso do islamismo, Kenneth Cragg, acredita que o que o Alcorão “repudia […] repetidas vezes […] não seja a doutrina cristã da encarnação, mas a heresia cristã do adopcionismo.” Trata-se da ideia de que Jesus era essencialmente um ser humano e que depois foi elevado à condição de filho de Deus; isto é: que foi melhorando-se até ser Deus. Cragg acha que, por meio de apresentarmos um quadro bíblico da pessoa de Cristo, poderíamos vencer muitos dos repúdios existentes no Alcorão.40

Apesar de tudo isso, devemos nos lembrar de que o Alcorão tem Jesus em uma posição bastante incomparável. Já ouvi falar que existem muçulmanos que chegaram à fé em Cristo mediante a leitura do Alcorão. Ficaram curiosos quanto a tudo que é dito ali a respeito de Cristo, e se sentiram levados a tirar informações a seu respeito, o que resultou na sua conversão a Cristo. Existe uma comunidade de muçulmanos na Nigéria que são chama- dos Isawa (literalmente “Jesus-istas”) e que concluíram, mediante a leitura do Alcorão, que Jesus é superior a Maomé. Negam a morte e ressurreição de Cristo, conforme foram ensinados no Alcorão; mas a sua existência é evidência do poder do testemunho que o Alcorão dá de Cristo.41

Colin Chapman diz que esse é um bom ponto de partida ao conversar com os muçulmanos. Sugere perguntarmos a um muçulmano: “Se você aceita o Alcorão como fonte fidedigna de evidências a respeito de Jesus, mas está insatisfeito com esse quadro incompleto, está disposto a suplementá- lo com o quadro mais completo de Jesus, nos Evangelhos?”42 Stephen Neill indica que talvez seja difícil persuadir um muçulmano a fazer isso. O muçulmano devoto típico diria, em primeiro lugar, que não há necessidade de suplementar aquilo que o Alcorão diz a respeito de Jesus, pois o Alcorão é a própria Palavra de Deus. Diria, ainda mais, que, se o quadro que o Novo Testamento pinta de Cristo contradisser a descrição de Cristo no Alcorão, o Novo Testamento deve estar forçosamente errado, porque o Alcorão é a Palavra de Deus.43 Apesar desses riscos, a tentativa de levar um muçulmano a ler os Evangelhos vale a pena.

Chapman ressalta que os discípulos originais estavam tão firmemente convictos quanto qualquer muçulmano de que Deus é um só. “Era seu credo

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básico, sua pressuposição fundamental.” No início, não conseguiam acreditar que Jesus estava declarando que ele mesmo era Deus — assim demonstram os registros nos Evangelhos (e.g., Jo 14.7-9). Mas Chapman diz: “através dos contatos com Jesus no decorrer de um período de três anos, foram paulatinamente forçados, por aquilo que viram e ouviram e experimenta- ram, a revisar seu modo de entender a unicidade de Deus. Não a rejeitaram, mas simplesmente revisaram seu conceito da unicidade à luz da evidência inescapável com que se confrontavam.”44 Dessa maneira, conseguimos confrontar os muçulmanos com a incomparabilidade de Cristo, sem alguns dos maus entendimentos do cristianismo que horrorizam os muçulmanos.

Conclusão

Demonstramos que no cristianismo os ensinos do fundador estão inextricavelmente vinculados com suas declarações a respeito da sua própria pessoa. Griffith Thomas chamou assim seu livro clássico a respeito de Jesus: Christianity Is Christ [Cristianismo é Cristo] e deu início ao livro com as palavras: “O cristianismo é a única religião no mundo que se baseia na pessoa do seu fundador.”45 Seguindo a prática cristã de dar a uma religião o nome do seu fundador, os ocidentais, às vezes, chamam o islamismo de “maometanismo” e os muçulmanos de “maometanos.” Mas os muçulmanos não aprovam isso. Maomé não passa de um profeta, um recipiente passivo da revelação, e não o fundamento da sua fé. Os muçulmanos colocam a ênfase em Deus, quando se referem à sua religião (Islam significa “sub- missão a Deus,” e Muslim significa “aquele que vive a sua vida de acordo com a vontade de Deus”). Os seguidores de Jesus, entretanto, não tinham a mínima hesitação em aceitar o nome de cristaos que lhes foi atribuído em Antioquia (At 11.26).

Por ocasião da morte do Buda, seus seguidores lhe perguntaram qual seria a melhor maneira de se lembrarem dele. Mas “ele simplesmente instou com eles que não se preocupassem com semelhante pergunta. Não era muito importante se eles se lembravam dele ou não. O essencial era o seu ensino.”46 Jesus, por outro lado, pouco antes da sua morte, ao instituir a Ceia do Senhor, disse: “Isto é o meu corpo dado em favor de vocês; façam isto em memória de mim” (Lc 22.19).

Fica claro que o modo de Jesus ensinar dependia da sua pessoa. Veremos no capítulo seguinte que suas palavras tinham o apoio da sua própria vida e

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que esse fato leva à natureza inescapável das afirmações de Cristo. Encer- rarei esse capítulo com as palavras memoráveis de C. S. Lewis no seu livro Mere Christianity [Cristianismo puro e simples]. Estava procurando explicar que é realmente uma atitude tola dizer a respeito de Cristo: “Estou disposto a aceitar Jesus como um grande mestre da moralidade, mas não aceito sua afirmação quanto a ser Deus.” Lewis diz:

Essa e uma coisa que nao devemos falar. Um homem que era mero homem, e que dizia o tipo de coisas que Jesus dizia nao seria um grande mestre da moralidade. Seria, ou um lunatico — no mesmo nivel de quem declarasse ser um ovo cozido — ou seria um demonio do inferno. Voce pode coloca-lo no manicomio como demente, ou voce pode cuspir nele e o matar como demonio; ou voce pode prostrar-se aos seus pes e chama-lo de Senhor e Deus. Nao vamos, porem, apresentar alguma bobagem condescendente quanto a ele ser um grande mestre humano. Ele nao nos deixou em aberto essa opcao. Nao pretendia mesmo oferecer-nos essa escolha.47

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1 Leon Morris: “The Gospel according to St. John,” em New International Commentary on the New Testament (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1971), 313.

2 George Eldon Ladd: Teologia do Now Testamento (trad. Darcy Dusilek et al. São Paulo: Exodus, 1997).

3 William Temple: Readings in John’s Gospel (1939, 1940; reimpressão, Wilton: Moorehouse Barlow, 1985), 225 (grifos dele).

4Stephen Neill: The Supremacy of Jesus (London: Hodder and Stoughton, 1984), 68.

5Ibid., 67.

6 W. Griffith Thomas em Christianity Is Christ (1948; reimpressão: New Canaan, Conn.: Keats Publishing, 1981), 34.

7 Neill: Supremacy of Jesus, 67.

8R. T. France: Jesus the Radical (Leicester: InterVarsity Press, 1989), 46.

9 David Bentley-Taylor: Augustine: Wayward Genius (London: Hodder and Stoughton; Grand Rapids, Mich.: Baker, 1980 e 1981), 58.

10Tony Lane: The Uon Concise Book of Christian Thought (Herts.: Lion Publishing, 1984), 40.

11 Bentley-Taylor: Augustine, 189.

12Ibid., 238.

13 France: Jesus the Radical, 204.

14 Ver Mateus 5.21-22, 27-28, 31-32, 33-34, 38-39, 43-44.

15Joachim Jeremias: New Testament Theology: The Proclamation of Jesus, trad. John Bowden (New York: Scribner’s, 1971), 35.

16Ibid., 36.

17Joachim Jeremias: The Prayers of Jesus (Naperville, ILL: Allenson, 1967), 108-15; citado em I. Howard Marshall: The Origins of New Testament Christology (Leicester e Downer’s Grove, 111.: InterVarsity Press, 1976), 45.

18Morris: “João,” 309.

19 Leon Morris: The Lord from Heaven (Leicester e Downer’s Grove, 111.: InterVarsity Press, 1974), 36.

20Leon Morris: Reflections on the Gospel of John, vol. 2 (Grand Rapids, Mich.: Baker, 1987), 217. 21 Leon Morris: Jesus Is the Christ: Studies in the Theology of John (Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, Leicester: InterVarsity Press, 1989), 107.

22Ibid., 107.

23Morris: “John,” 474.

24 Donald Guthrie: New Testament Theology (Leicester e Downer’s Grove, 111.: InterVarsity Press, 1981), 332.

25 R.T. France: “The Gospel According to John,” em The Tyndale New Testament Commentaries (Lei- cester: InterVarsity Press; Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1985), 415.

26 F. F. Bruce: The Gospel of John (London: Pickering and Inglis; Grand Rapids, Mich.: Eerd- mans, 1983), 394.

27 D. A. Carson: The Gospel According to John (Leicester: InterVarsity Press; Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1991), 395. Em português, O evangelho de Joao, Shedd Publicações.

28 Essa conclusão foi tirada por Sir Edwyn Hoskyns em The Fourth Gospel, ed. F. N. Davey (London: Faber and Faber, 1954); citado em Morris, “João,” 523.

29Carson: The Gospel According to John, 397.

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311W Gary Phillips: “An Apologetic Study of John 10.34-36.” Bibliotheca Sacra 146 (outubro— dezembro, 1989): 409, citado em J. Carl Laney: Moody Gospel Commentary: John (Chicago: Moody Press, 1992), 197.

31 Laney: Moody Gospel Commentary: John, 196.

32 William Barclay: “The Gospel of John,” The Daily Study Bible Series, ed. rev., vol. 2 (Philadel- phia: Westminster, 1975), 78.

33 Citado em Thomas: Christianity Is Christ, 26.

34Ibid., 25.

35 Ajith Fernando: The Christian’s Attitude Toward World Religions (Wheaton, 111.: Tyndale House, 1987), 84-85.

36Thomas: Christianity Is Christ, 38.

37 Quanto à opinião de Gandhi, ver Μ. Μ. Thomas: The Acknowledged Christ of the Indian Re- naissance (London: SCM Press, 1969), 200, 236.

38Thomas: Christianity Is Christ, 41.

39 Para um resumo do conceito islâmico de Cristo, ver Colin Chapman: Christianity on Trial (Wheaton, 111.: Tyndale House, 1974), 406-11. Em português, Cristianismo, melhor resposta, Edições Vida Nova.

40 Kenneth Cragg: “Islam and Incarnation,” em Truth and Dialogue, ed. John Hick (London: Sheldon Press, 1974), 138-39; citado em Neill: Supremacy of Jesus, 116-17.

41 Relatado por Stan Gurthrie: “Muslim Mission Breakthrough,” Christianity Today, 13 de de- zembro de 1993, 26.

42Chapman: Christianity on Trial, 409.

43 Stephen Neill: Crises of Belief (London: Hodder and Stoughton, 1984), 82 (edição norte-americana: Christian Faith and Other Faiths [Downers Grove, 111.: InterVarsity Press]).

44Chapman: Christianity on Trial, 410 (grifos dele).

45 Thomas: Christianity Is Christ, 1.

46Essa questão é levantada por H. D. Lewis em World Religions (London, 1966), 174, e citada por Sir Norman Anderson em Christianity and the World Religions (Leicester e Downers Grove, 111.: InterVarsity Press, 1984), 80.

47 C. S. Lewis: Mere Christianity (New York: Macmillan, 1952), 56. Em português, Cristianismo puro e simples, Martins Fontes.

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BIBLIOGRAFIA

FERNANDO, Ajith. A supremacia de Cristo: uma apologética ao alcance de todos. São Paulo. Publicações Shedd. 2013, p. 17-53.

MARKOS, Louis. Apologética cristã para o século XXI. Rio de Janeiro. Central Gospel. 2013, p. 209-220.

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